O que os fósseis podem revelar sobre a mente humana? Quando se trata de outras partes do corpo, os paleontólogos conseguem estabelecer relações mais diretas entre o registro fóssil preservado (por exemplo, as dimensões de um osso da perna) e suas funções (por exemplo, a locomoção). Mas quando falamos sobre a mente humana, a situação é bem mais complexa. O tecido cerebral não fossiliza como dentes e ossos. Entretanto, é possível observar a cavidade interna da caixa craniana, chamada de endocrânio, para se compreender a anatomia cerebral externa de espécies extintas.
Um dos objetos de estudo dos cientistas são os endocasts, que são moldes internos do endocrânio que ocorrem naturalmente através da fossilização ou são fabricados artificialmente e que são muito parecidos com cérebros. À medida que o cérebro aumenta e se expande durante o nosso crescimento, suas estruturas mais superficiais deixam uma marca no osso craniano. Essas impressões endocranianas fornecem evidências sobre o tamanho do cérebro, a vasculatura das meninges e aspectos da morfologia cerebral, incluindo a forma geral, os padrões sulcais e a lateralização. Através dos endocasts, é possível ter acesso a essas impressões, porém é necessário muito mais do que isso para se compreender de forma abrangente a função cerebral, como microestrutura, expressão gênica, conectividade, bioquímica, fisiologia, comportamento, entre outros.

O cérebro humano pode ser mais bem entendido através de comparações com espécies de primatas e outros mamíferos assim como com espécies com um parentesco mais distante, mas que compartilham características ancestrais com os seres humanos. O estudo do canto dos pássaros, por exemplo, forneceu informações essenciais sobre os mecanismos neurais do aprendizado vocal em pássaros e sua ligação com a linguagem humana. O cenário é tão complexo que as bases estruturais e funcionais das habilidades cognitivas que diferenciam os seres humanos de outras espécies ainda hoje não são totalmente compreendidas mesmo nos humanos e primatas atuais. O mais interessante é que o estudo da história evolutiva do cérebro humano é fundamental para a compreensão da mente humana moderna. A história evolutiva das espécies está representada na imagem da árvore filogenética a seguir:

As teorias em torno da evolução cerebral giram em torno, sobretudo, das seguintes questões: Para que servem cérebros grandes? O aumento do tamanho do cérebro pode apresentar funções diferentes em espécies diferentes? O funcionamento cerebral pode mudar independentemente das mudanças em seu tamanho? O desenvolvimento de cérebros grandes pode estar relacionado à plasticidade e, em especial, à cultura? Precisamos descobrir qual a função dos cérebros grandes. Isso porque os seres humanos têm o maior cérebro (em peso e número de neurônios) em relação ao tamanho do corpo, com alguns aspectos (como a área da superfície do córtex de associação) sendo particularmente pronunciados. É possível ter uma ideia de como os cérebros grandes funcionam a partir da observação dos mecanismos convergentes de evolução do peso do cérebro, do número de neurônios, da densidade de neurônios, da energia e da organização. Os seres humanos pertencem a um dos três únicos grupos de espécies que têm cérebros com mais de 700 g, junto com as baleias e os elefantes. As aves também são importantes objetos para o estudo de mecanismos convergentes e têm densidades neuronais muito mais altas do que muitos mamíferos, com números totais de neurônios que se equiparam à faixa dos primatas.
O volume endocraniano médio aumentou durante a evolução do gênero Homo, de aproximadamente 600 cm³ no Homo habilis para 1350 cm³ no atual Homo sapiens. Um cérebro maior e com mais neurônios nos proporcionou maior poder de processamento, mas não sem um custo. Isso porque, entre os mamíferos, o tecido cerebral é um dos tecidos que mais exigem energia. No Homo sapiens, o cérebro adulto requer 20% da ingestão diária de energia, embora represente apenas cerca de 2% da massa corporal. Os cérebros das crianças, no momento de pico da formação das conexões neuronais, consomem mais de 60% do metabolismo do corpo em repouso. A maior parte da energia que vai para o cérebro é consumida por seus cerca de 90 bilhões de neurônios, principalmente em processos de sinalização e manutenção de potenciais de repouso. No entanto, embora cerca de 80% dos neurônios estejam localizados no cerebelo, essa estrutura consome apenas cerca de 10% da energia total do cérebro. Em contrapartida, o córtex contém cerca de 20% dos neurônios e consome quase 60% de sua energia. Isso se deve à grande e ramificada estrutura neurônios corticais, que tem inúmeras sinapses para integrar os inputs e um grande número de pequenos axônios não mielinizados com altos custos de condução. O número de sinapses por neurônio aumenta em relação ao aumento do tamanho do cérebro nos primatas, e os seres humanos têm neurônios corticais com o maior número de sinapses.
Devido à falta de material cerebral de espécies extintas de hominíneos, é possível apenas especular sobre o número de neurônios e os seus custos de energia. Mas, com base em dados do forame craniano de primatas atuais e hominíneos fósseis, estima-se que o fluxo sanguíneo tenha aumentado acentuadamente durante os últimos 3 milhões de anos da evolução humana. Segundo estimativas, houve um aumento de seis vezes na taxa de fluxo sanguíneo cerebral total. Além disso, o número de neurônios em primatas existentes (incluindo os humanos) aumenta quase linearmente com a massa cerebral, o que significa que o número de neurônios pode ter mais do que dobrado durante a evolução da linhagem dos hominíneos.

Como os seres humanos puderam arcar com a energia necessária para suprir esse aumento no tamanho do cérebro e no número de neurônios? Para atender às crescentes demandas de energia do corpo e do cérebro, os seres humanos se adaptaram por meio de mecanismos fisiológicos e comportamentais para aumentar a renovação energética. Por exemplo, os dados indicam um aumento da gordura corporal nos humanos modernos, combinado com mudanças nas estratégias de busca de alimentos, maior compartilhamento de comida entre os indivíduos e um tipo de locomoção menos dispendioso em termos energéticos. A descoberta do fogo, do cozimento e de outras técnicas de preparação de alimentos possibilitou o consumo de maior quantidade de calorias. Essas adaptações evoluíram com o aumento do volume do cérebro e ambos se influenciaram de maneira mútua. Por exemplo, a maior capacidade de processamento de cérebros maiores possibilitou estratégias de busca de alimentos mais sofisticadas e interações sociais mais cooperativas, que disponibilizaram mais energia para promover ainda mais o crescimento do cérebro.
Embora o registro fóssil dos hominíneos forneça a única evidência direta sobre a encefalização em seres humanos, as mudanças no tamanho do cérebro podem ser entendidas de forma mais completa a partir do estudo de outros vertebrados, como mamíferos de cérebro grande, aves com alta densidade de neurônios e seus parentes mais próximos (dinossauros e crocodilos), bem como os primeiros sinapsídeos[1]. Entretanto, para entender a “mente”, é necessário mais do que estudar o cérebro de forma isolada. É preciso estudar as relações entre o cérebro e todo o corpo no qual está integrado. Os processos sensoriais, motores e fisiológicos dependem do funcionamento conjunto do cérebro e do restante do corpo. Além disso, a função cerebral não afeta apenas as funções mentais, mas também o consumo de energia e a produção de calor corporais. Dessa forma, as evidências paleoneurológicas são mais bem compreendidas em diálogo com evidências de diversas áreas de pesquisa, como a fisiologia comparativa e a arqueologia experimental.
Não podemos ter acesso direto aos comportamentos dos humanos do passado nem aos processos cognitivos subjacentes a eles. Porém, os arqueólogos conseguem inferi-los a partir dos registros arqueológicos. A cultura material dos hominíneos do Paleolítico inclui ferramentas, arte rupestre (gravuras e pinturas), adornos pessoais, sepultamentos, entre outros. Experimentos neurocientíficos realizados com participantes atuais têm sido usados para inferir a base neural das habilidades cognitivas necessárias aos hominíneos do Paleolítico para produzir os artefatos descobertos pelos arqueólogos. Embora esses estudos sejam valiosos e informativos, possuem limitações, pois envolvem humanos atuais com cérebros atuais, que realizam réplicas de comportamentos antigos. Por exemplo, ainda não está claro quais padrões de atividade cerebral em um Homo erectus correspondiam à produção de machados de mão. Além disso, até o momento, sabemos muito pouco sobre como nossos cérebros processam aspectos simbólicos da cultura material, como ornamentos, pinturas corporais e gravuras.
Atualmente, novos caminhos estão se abrindo para pesquisas futuras, envolvendo coleções paleoneurológicas que incorporam neuroimagem, métodos comparativos filogenéticos, biologia molecular, descobertas paleoantropológicas e compartilhamento de dados e ferramentas. Eles oferecem a possibilidade de integração de informações em diferentes escalas de organização de sistemas in vivo e in vitro para investigar mecanismos biológicos. Dessa forma, surgem novas possibilidades para responder a perguntas ainda sem respostas sobre a evolução do cérebro humano.
Questões ainda sem respostas:
- Energia: Como os cérebros humanos funcionam com um gasto energético diferente dos cérebros de outras espécies?
- Comportamento e cognição: Os cérebros humanos são especializados na fabricação de ferramentas e em outros comportamentos representados nos registros arqueológicos?
- Os cérebros humanos são especializados em plasticidade e têm uma capacidade incomum de se desenvolver em resposta à variabilidade ambiental?
Novas tendências
- Neuroimagem: A organização e as conexões do cérebro podem ser mapeadas em endocasts usando modelos de neuroimagem.
- Métodos comparativos filogenéticos: A história evolutiva é uma ferramenta poderosa para associar características entre múltiplas espécies, mesmo quando o registro fóssil é incompleto.
- Biologia molecular e celular: Sequências de DNA fóssil são estudadas funcionalmente por meio de organoides cerebrais, modelos transgênicos e associações entre genótipo fóssil e fenótipo fóssil em pessoas vivas.
- Descobertas paleoantropológicas: Fósseis e artefatos são as únicas evidências diretas da história evolutiva.
- Compartilhamento de dados e ferramentas: Conjuntos de dados on-line de coleções comparativas de cérebros e fósseis de museus possibilitam pesquisas importantes, que podem utilizar ferramentas on-line gratuitas tornam o trabalho mais eficiente por meio da colaboração, ciência comunitária e inteligência artificial.

[1] Para saber sobre os sinapsídeos, acesse: https://www.assis.unesp.br/#!/departamentos/ciencias-biologicas/museu-cbi/acervo/fosseis/animal/sinapsidas/
Fonte da matéria
de Sousa, A.A., Beaudet, A., Calvey, T. et al. From fossils to mind. Commun Biol 6, 636 (2023). https://doi.org/10.1038/s42003-023-04803-4
Respostas de 2
Muito bom
Amei o artigo! Simplesmente fantástico pensar nessa evolução e a relação entre tamanho do cérebro x energia x plasticidade. Obrigada por compartilhar!