Paleontografia (Paleoarte)

Por Beatriz Grigio

Já parou para pensar como são feitas as ilustrações de seres extintos? Bem, essa questão pode ser respondida através de um campo da paleontologia chamado “Paleoarte”. Mas afinal, o que é Paleoarte?

            A Paleoarte consiste em ilustrações responsáveis por transmitir, através da linguagem visual, as evidências e registros fósseis recuperados pela paleontologia, reconstituindo seres extintos. Esta narrativa gráfica atua como um elo entre a ciência e arte, resultando em uma importante ferramenta de divulgação científica, como podemos observar em livros, artigos, museus, vídeos, documentários e até mesmo no feed de suas redes sociais.

            Na reconstituição paleontológica, o paleoartista deve não apenas observar, mas também interpretar os dados presentes no fóssil e, com o domínio artístico e acurácia científica, reconstruir o organismo extinto. Para realizar este trabalho, o paleontólogo e o paleoartista atuam lado a lado, unindo saberes biológicos, geológicos e artísticos de maneira interdisciplinar. Deste modo, os conceitos abordados vão além dos detalhes anatômicos: a análise da postura, formação geológica em que o fóssil foi encontrado, estudo de parentesco filogenético e didática visual são os pilares deste estudo.

Um pouco de história…

            Desde os primórdios de existência humana, podemos notar que a arte andou lado a lado do desenvolvimento de nossa sociedade. Das pinturas rupestres retratando as caçadas dos homens das cavernas, passando por técnicas avançadas de perspectiva e profundidade do renascimento e atingindo as diversas manifestações artísticas contemporâneas, podemos notar a importância da arte em nossa vida. Mas… como surgiu essa história de retratar seres fósseis, organismos que viveram antes mesmo que o próprio ser humano?

            Os primeiros achados fósseis, registrados na antiguidade Ocidental e Oriental, foram retratados como partes constituintes de seres fantásticos com proporções assustadoras, responsáveis por fomentar inúmeras lendas do imaginário humano, tais como os dragões e monstros marinhos.

            Já no século XIX, Georges Cuvier, considerado o pai da Paleontologia, ilustrou as evidências fósseis de modo esquemático e reconstruiu obras in vivo destes animais, encontrados principalmente em sua obra “Discours Préliminaire a las Recherches sur les ossements fósiles de quadrupède”. Ele foi pioneiro no uso da anatomia comparada e biomecânica para o estudo da reconstituição destes materiais, metodologia ainda usada por paleoartistas modernos.

Anoplotherium, por Georges Cuvier (início do século XIX)

            No século XX, quando a paleontologia se encontrava já consolidada e em um cenário propício para o desenvolvimento de técnicas mais sofisticadas para a paleoarte, alguns nomes se destacaram e contribuíram para as bases metodológicas da paleoarte atual. O artista americano Charles Knight é considerado um emblemático artista e divulgador da reconstituição paleontológica, utilizando dinâmicas de pose, movimento e relações interespécies em suas obras, além de estudar reconstruções de volume ainda utilizadas hoje, passando pela estruturação óssea, correlações parentais, inserção muscular, articulações e composição adiposa e tegumentar. Knight foi influenciado por Orthencio Abel, um naturalista e paleontólogo austríaco e considerado fundador da paleobiologia, e Henry Osborn, presidente do Museu Americano de História Natural da época.

Leaping laelaps, por Charles Knight, 1896 (atualmente, Dryptosaurus aquilunguis)

            Outro nome do século XX que merece destaque foi o ilustrador Tcheco Zdenek Burian, muito influente na era moderna e por vezes referenciado como “Charles Knight Europeu” devido aos detalhes anatômicos e técnicas avançadas presentes em suas obras. Sua experiência com a reconstrução paleoartística teve início em 1935, em cooperação com o paleontólogo Josef Augusta, na Universidade Charles, em Praga.

            Em 1986, Mark Pallet cunhou pela primeira vez o termo “Paleoartist”, referindo-se ao processo de ilustração paleontológica acompanhada por paleontólogos.

            No entanto, até da década de 70, os dinossauros foram retratados com aparência reptiliana, como animais lentos, pesados e com a cauda arrastando no chão. Em oposição às pesquisas vigentes, Gehard Heilmann escreveu “A Origem das Aves”, publicado em 1926, descrevendo e ilustrando os dinossauros como hipotéticos répteis emplumados, de cauda elevada e comportamento ativo. Sustentando essa hipótese, em 1969, o paleontólogo americano John Ostrom publica a descrição de Deinonychus antirrhopus, um terópode visivelmente ágil, cuja representação visual realizada por Robert Bakker, seu aluno. No entanto, ambos foram alvos de duras críticas na época.

Deinonychus, por Robert Bakker (1969).

            Posteriormente, em 1977, Gregory Paul tornou-se aluno de Bakker, desenvolvendo pesquisas em torno da morfologia e locomoção ágil dos dinossauros nos anos seguintes. No entanto, Paul também contribuiu para a paleoarte: através de uma série de desenhos dinâmicos com pinturas a óleo e uma planejada composição de cores, ele foi um dos primeiros artistas profissionais a descrevê-los como ativos e de “sangue quente”, além de ilustrar terópodes portadores de penas. Também influenciou a obra cinematográfica dirigida por Steven Spielberg “Jurassic Park”, a qual difundiu os avanços da paleontologia (que até então eram restritas ao meio acadêmico) e da paleoarte, utilizando-se de computação gráfica para a construção estética dos répteis.

            Recentemente, a representação de dinossauros avianos emplumados ganhou nítido destaque, como observado nas obras da ilustradora americana Emily Willoughby.

Dakotaraptor, por Emily Willoughby (2015).

Atualmente, os recursos utilizados para realizar a reconstituição paleontológica ampliaram-se consideravelmente com a arte digital, embora a arte tradicional ainda atue de modo essencial nas ilustrações. No Brasil, diversos paleoartistas de todas as regiões do país vem se destacando, como Rodolfo Nogueira, Felipe Alves Elias, Hugo Cafasso, Maurilio Oliveira, Aline Ghilardi, João Eudes, Marcio Castro, e Julia Oliveira.

Como são feitas as reconstituições?

            As primeiras informações extraídas são provenientes do esqueleto do animal. Quando os fósseis estão incompletos, a reconstrução é realizada através da anatomia comparada, complementando as partes faltantes em prol de reconstituir o indivíduo com maior precisão. Como os tecidos moles (músculos, tegumentos, penas, pelos…) são raramente preservados, a volumetria dos músculos é desenhada a partir de cicatrizes de inserção muscular presentes no material fóssil e relações filogenéticas, principalmente com parentescos viventes (comparação anatômica com análogos modernos). A biomecânica, por sua vez, é utilizada como um pilar essencial para descrever a possível locomoção e postura do animal.

            Posteriormente, a representação tegumentar é geralmente inferida a partir de comparação anatômica, bem como suas estruturas, que incluem pelos, escamas, plumas, etc.. No entanto, há registros fósseis da preservação de estruturas microscópicas denominadas melanócitos, organelas que, em vida, são responsáveis por fornecer a pigmentação de diversos táxons de tetrápodes. A pesquisa destas estruturas em tecido mole preservado em fósseis possibilita a aplicação de cores mais fidedigna na reconstrução do animal extinto, embora alguns fatores, como a iridescência em penas, deva ser considerado como possível fator associado a dimorfismo sexual, como observado em algumas aves atuais.

            Na realização da reconstituição paleontológica, a representação pode constituir um único indivíduo, destacando suas características particulares. Ao integrarmos as formações geológicas pretéritas (estrutura trófica, clima, relevo, vegetação), relações intrapopulacionais (cuidado parental, comportamentos gregários ou solitários, migrações…) e ecológicas (predação, simbiose…), a paleoarte irá retratar um paleoambiente e, portanto, representar a biodiversidade do passado.

Paleoambiente do Pleistoceno brasileiro (Ilustração da paleoartista Beatriz Grigio)

            Ok! Agora que você entendeu um pouquinho mais sobre a paleoarte e como ela é feita, vamos para o passo seguinte: Os materiais utilizados!

Os recursos variam desde a arte tradicional envolvendo tinta a óleo, acrílica, lápis grafite, caneta nanquim, todos utilizados sobre papel, telas e até murais. Atualmente, softwares de arte gráfica vem ganhando destaque, com funcionalidades 2D e 3D, a exemplo do Photshop, Krita, Clipart studio, 3D Max e ZBrush. Há ainda a representação de esculturas, permitindo a modelagem do material em tamanho real.

            Os maiores desafios encontrados na reconstrução envolvem um fóssil muito incompleto (necessitando de muitas comparações e maiores estudos), o custo financeiro de materiais necessários para a produção da arte tradicional e sua reposição, acesso á tecnologias compatíveis para os softwares de artes gráficas e até mesmo o acesso ao material fóssil.

Por que fazer Paleoarte?

A Paleoarte possibilita a compreensão da aparência, comportamentos e interações ecológicas dos animais extintos em vida para o público leigo, culminando em uma importante ferramenta de divulgação científica. A exposição de ilustrações e esculturas em museus e instituições educacionais viabilizam o entendimento do passado, além de propiciar ao estudante um incentivo na carreira científica. Mídias digitais, como vídeos e documentários, também se utilizam da paleoarte para a divulgação científica.

Deste modo, a paleoarte se fundamenta em estudos interdisciplinares para constituir um elo entre a ciência e a arte, além de realizar a disseminação do conhecimento e das novas descobertas científicas além dos muros da Universidade.

Spinosaurus aegiptyacus predando um Neoceratodus africanus (Ilustração da paleoartista Beatriz Grigio)

Para saber mais

Paleoarte une arte e Ciência

‘Reconstituição Paleontológica’ – A arte em auxílio da Paleontologia: Paleoarte!

Caracterização química da melanina do pterossauro desafia inferências de cores em animais extintos

Ciência e Arte: Uma análise do uso da Comunicação visual como meio de divulgação científica