Por: Geraldo Pereira de Morais Júnior
O licenciamento arqueológico no Brasil é um processo regulamentado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e tem como objetivo assegurar que obras de infraestrutura e desenvolvimento respeitem o patrimônio arqueológico do país. Muitas pessoas ainda desconhecem o processo de licenciamento arqueológico, então irei resumir como ele é definido de acordo com a legislação vigente. De acordo com a Instrução Normativa nº 001, de 25 de março de 2015 – IPHAN (IN 1/2015), o processo se desenrola em várias etapas e envolve análises detalhadas e projetos específicos, que visam proteger vestígios históricos e culturais que possam ser impactados pela construção. Contudo a legislação que envolve o patrimônio arqueológico é ampla.
HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO SOBRE O PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO
O Brasil possui uma rica herança arqueológica, com sítios que datam de milhares de anos e revelam informações importantes sobre os povos originários e o desenvolvimento das sociedades que viveram no território. No entanto, a proteção desses vestígios nem sempre foi uma prioridade. A preocupação com o patrimônio arqueológico começou a ganhar relevância apenas nas últimas décadas, impulsionada pelo desenvolvimento econômico e a necessidade de regular obras de infraestrutura em regiões de valor histórico. Esse movimento levou à criação de leis e normas que regulam a preservação do patrimônio arqueológico no país.
A primeira legislação importante sobre o patrimônio histórico no Brasil foi o Decreto-Lei nº 25, de 1937, que criou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), hoje conhecido como Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Esse decreto também define e regulamenta o processo de tombamento, que é o ato administrativo que reconhece oficialmente um bem como patrimônio cultural e o protege de alterações ou impactos que possam comprometer seu valor histórico e artístico. Embora esse decreto fosse um marco para a preservação do patrimônio cultural, ele não se focava especificamente em bens arqueológicos. Seu objetivo era mais amplo, voltado também à proteção de prédios históricos, monumentos e outros bens culturais.
Nas décadas seguintes, o crescimento urbano e a expansão de obras públicas no país começaram a pressionar o patrimônio arqueológico. Esse contexto exigiu uma adaptação das normas, pois descobertas de sítios arqueológicos passaram a ser mais frequentes. Em resposta, o IPHAN começou a estabelecer diretrizes específicas para a arqueologia. Em 1961, a Lei nº 3.924 foi criada e representou um avanço fundamental: ela passou a reconhecer o valor científico dos vestígios arqueológicos e a considerar esses sítios (descobertos ou não) como bens da União (proibindo a comercialização de bens arqueológicos). Essa lei determinou que quaisquer descobertas arqueológicas feitas em território brasileiro seriam protegidas pelo Estado e não poderiam ser impactadas sem autorização. O descumprimento desta lei federal acarreta em aplicação das sanções 163 a 167 do código penal que se configura como multa e detenção.
A Lei nº 3.924/1961 foi um grande passo, mas o licenciamento arqueológico ainda não era formalizado, e as exigências de proteção dependiam do interesse e da intervenção de profissionais da arqueologia e do próprio IPHAN. Foi estabelecido na Portaria nº 007/1988 (SPHAN) normas específicas para as atividades de pesquisa, escavação, coleta e intervenção em sítios arqueológicos no Brasil por parte de pesquisadores.
Foi somente a partir dos anos 2000, com a intensificação dos grandes projetos de infraestrutura no país, que o Brasil formalizou o processo de licenciamento arqueológico. O IPHAN estabelece na Portaria 230 de 17 de dezembro de 2002 (IPHAN) – revogada, os procedimentos de licenciamento arqueológico que vigoraram até o ano de 2015 quando uma nova normativa do IPHAN estabeleceu regras específicas para a realização de estudos arqueológicos em áreas de construção. A Portaria nº 28, de 31 de janeiro de 2003 (IPHAN) – revogada estabeleceu que a renovação de licenças ambientais de empreendimentos hidroelétricos deveria incluir estudos arqueológicos a serem realizados na faixa de depleção dos reservatórios, entre os níveis médio e máximo de enchimento.
A Portaria Interministerial nº 60/2015 foi emitida em conjunto pelo Ministério da Cultura e pelo Ministério do Meio Ambiente para regulamentar a participação do IPHAN nos processos de licenciamento ambiental, principalmente em empreendimentos que possam afetar bens culturais protegidos, incluindo sítios arqueológicos. Essa portaria determina que o IPHAN deve ser consultado em licenciamentos que envolvam áreas com potencial impacto sobre o patrimônio cultural. A partir dessa portaria, foi publicada a Instrução Normativa nº 001, de 25 de março de 2015 – IPHAN (IN 1/2015) que revoga a Portaria 230 de 17 de dezembro de 2002e atualmente estabelece quais estudos de impacto ao patrimônio arqueológico as empresas devem realizar para conseguir a anuência e, em certos casos, as medidas de mitigação (diminuição) do impacto. As medidas de mitigação envolvem, dentre outras, programas de educação patrimonial, avaliação e gestão de impacto ao patrimônio arqueológico. A instrução representa o esforço mais recente do Brasil para proteger sua herança arqueológica de maneira sistemática e rigorosa, buscando alcançar o desenvolvimento econômico junto com a preservação de nossa história.
Hoje, o licenciamento arqueológico brasileiro garante que os empreendimentos sigam diretrizes claras para proteger o patrimônio arqueológico, assegurando que as futuras gerações possam conhecer e valorizar a história e cultura que constroem nossa identidade nacional. A legislação continua a evoluir, refletindo o compromisso crescente do país em preservar sua herança arqueológica em um contexto de expansão econômica e desenvolvimento. Atualmente a IN 1/2015 está em processo de revisão, podendo ter alterações em breve.
Etapas do Processo de Licenciamento
O primeiro passo do processo é o preenchimento e envio da Ficha de Caracterização de Atividade (FCA) por parte do empreendedor (podendo ter auxílio de um profissional de arqueologia). Após análise do FCA realizada pelo IPHAN, há a emissão do Termo de Referência Específico (TRE) que determina o que é necessário para obtenção da anuência do IPHAN; é de extrema importância seguir todos os procedimentos listados no TRE, que é elaborado a partir da IN 1/2015. Essa etapa inicial é essencial para entender o escopo do projeto e o potencial de impacto a sítios arqueológicos. A partir desta análise, o IPHAN determina no TRE o nível do empreendimento que pode ser classificado em um (ou mais) dos quatro níveis (Nível I, II, III e IV) estabelecidos no Anexo I da IN 1/2015. Tais níveis definem as etapas do licenciamento arqueológico necessárias para obtenção da anuência do IPHAN, sendo mais complexa à medida que o nível aumenta. O TRE indicará também se há a necessidade de elaboração do Relatório de Avaliação de Impacto aos Bens Culturais Tombados, Valorados e Registrados (Patrimônio Edificado, Imaterial e Ferroviário).
Antes de detalharmos os níveis é importante salientar que todo projeto e relatório deve ser analisado pelo IPHAN que emitirá um parecer aceitando ou pedindo complementações nos projetos e relatórios. A execução das etapas de campo, previstas nos projetos enviados, só serão permitidas após publicação de portaria no Diário Oficial da União (DOU) autorizando a execução da etapa de campo.
Nível I e II
Para empreendimentos de Nível I, considerados de menor risco, não é exigida uma investigação mais aprofundada, e o projeto pode seguir desde que um Termo de Compromisso do Empreendedor (TCE) (Anexo III da IN 1/2015) seja enviado assegurando o acompanhamento arqueológico básico. Já para empreendimentos classificados no Nível II é adotado o Acompanhamento Arqueológico, que consiste na presença, em campo, de Arqueólogo. Sendo assim,além do TCE, deverá ser encaminhado também Termo de Compromisso do Arqueólogo Coordenador (TCA) (Anexo IV da IN 1/2015), o currículo do arqueólogo, o cronograma de execução de obras que impliquem em revolvimento de solo, o projeto de acompanhamento arqueológico (elaborado pelo arqueólogo) e o cronograma de envio dos Relatórios Parciais e Final do Acompanhamento Arqueológico (elaborados pelo arqueólogo).
Caso sejam identificados bens arqueológicos na área, será necessário realizar um Projeto de Salvamento Arqueológico, esse projeto detalha o método que será utilizado nas escavações e outras intervenções para preservar e documentar os vestígios arqueológicos. A partir da análise do IPHAN é emitido um parecer deferindo ou pedindo complementações no projeto. Se deferido, espera-se a publicação da portaria no DOU. Após o salvamento, é elaborado um Relatório de Salvamento Arqueológico, que detalha os achados e as ações de preservação, que passa por uma análise do IPHAN, que novamente emite um parecer.
Nível III e IV
Nos níveis III e IV, assim como no Nível II, é necessária a realização de estudos por profissionais de arqueologia. O nível III exige um estudo de prospecção arqueológica que será detalhado no Projeto de Avaliação de Impacto ao Patrimônio Arqueológico (PAIPA). Após análise do projeto realizado pelo IPHAN, caso o parecer seja pelo deferimento do projeto, espera-se a publicação da portaria autorizando a etapa de campo prevista no projeto no DOU. Após a execução do campo é elaborado o Relatório de Avaliação de Impacto ao Patrimônio Arqueológico (RAIPA) que novamente irá ser avaliado pelo IPHAN podendo ser deferido exigido um pedido de complementação.
O Nível IV exige o Projeto de Avaliação do Potencial de Impacto ao Patrimônio Arqueológico (PAPIPA) que visa avaliar com maior precisão o potencial de presença de sítios arqueológicos. Em seguida, o IPHAN analisa o PAPIPA e emite um parecer, que pode aprovar o projeto ou indicar a necessidade de complementações. Caso aprovado, espera-se a publicação de portaria no DOU para realização da etapa de campo. Então, elabora-se o Relatório de Avaliação do Potencial de Impacto ao Patrimônio Arqueológico (RAPIPA) que novamente será avaliado pelo IPHAN. Em seguida, é realizado o mesmo procedimento do nível III. Caso sejam encontrados bens arqueológicos é necessário elaborar e executar o Projeto Integrado de Educação Patrimonial (PIEP) integrado ao Programa de Gestão do Patrimônio Arqueológico (PGPA), que são etapas adicionais para mitigar os impactos aos sítios arqueológicos. O PIEP visa educar as comunidades e trabalhadores envolvidos na obra sobre a importância do patrimônio arqueológico, enquanto o PGPA é um plano de ações para resgatar e documentar os bens arqueológicos encontrados. Após análise do IPHAN e, em caso de deferimento e publicada a portaria no DOU, realiza-se a etapa de campo e análise em laboratório dos vestígios. Após entrega dos Relatórios e análise e parecer do IPHAN e após cumpridas todas as exigências definidas no TRE, o IPHAN emite sua manifestação conclusiva indicando ou não o prosseguimento do licenciamento.
Importância da Preservação: Preservar o passado é preservar a nós mesmos…
Proteger o patrimônio arqueológico é um ato de respeito à nossa história e à memória da humanidade e daqueles que nos antecederam. Cada sítio, cada vestígio encontrado na terra, é uma oportunidade única de entender a trajetória da humanidade na Terra, como viveram e como deixaram suas marcas no mundo. Os sítios arqueológicos são testemunhos vivos que nos conectam com nossas raízes e nos ajudam a construir uma identidade que transcende fronteiras e gerações.
Quando destruímos ou negligenciamos esse patrimônio, estamos apagando para sempre uma parte fundamental de nossa história, de forma que jamais poderá ser recuperada. As ruínas de um templo, os instrumentos de um povo, as pinturas rupestres que resistem ao tempo, tudo isso carrega em si um conhecimento precioso, que vai além do acadêmico – é um legado humano. Esse patrimônio tem muito a nos ensinar, pois nos revela as conquistas, os desafios e, até mesmo, os erros das sociedades que moldaram o mundo em que vivemos.
Preservar esse legado não é apenas uma obrigação histórica, mas também um ato de amor à nossa cultura e à diversidade cultural da humanidade que é a prova da imensa criatividade humana que encontrou diversas formas de viver esse mundo. Ao proteger um sítio arqueológico, garantimos que as futuras gerações possam, da mesma forma, explorar e compreender o passado. Engana-se quem acha que a preservação do patrimônio cultural seja um entrave ao desenvolvimento econômico; o turismo cultural, quando feito de maneira responsável, gera empregos, promove o desenvolvimento local, a difusão do conhecimento e garante que esses espaços continuem vivos e respeitados. O patrimônio arqueológico é um elo entre o passado e o futuro. Cada pedaço de terra ou objeto recuperado é um convite para refletirmos sobre o que fomos e, talvez, sobre o que ainda podemos ser. Preservá-lo é preservar a nossa identidade, é reconhecer que o nosso presente e futuro estão inevitavelmente entrelaçados com as lições e legados do passado. Se imagine como alguém que perdeu totalmente a memória. Sem se lembrar de seus pais, avós e demais parentes, sem saber o que fez ou deixou de fazer, sem saber seu nome, seria possível dizer quem você é? Essa é a humanidade sem sua história.
Legislação
DECRETO-LEI Nº 25, DE 30 DE NOVEMBRO DE 1937
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0025.html
Lei nº 3.924 – 1961
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/l3924.htm
Portaria nº 007/1988 (SPHAN)
http://portal.iphan.gov.br/uploads/legislacao/Portaria_n_007_de_1_de_dezembro_de_1988.pdf
Portaria 230 de 17 de dezembro de 2002
http://portal.iphan.gov.br/uploads/legislacao/Portaria_n_230_de_17_de_dezembro_de_2002.pdf
Portaria nº 28, de 31 de janeiro de 2003 (IPHAN)
http://portal.iphan.gov.br/uploads/legislacao/Portaria_n_28_de_31_de_janeiro_de_2003.pdf
Portaria Interministerial nº 60/2015
Instrução Normativa nº 001, de 25 de março de 2015 – IPHAN (IN 1/2015)
http://portal.iphan.gov.br/uploads/legislacao/INSTRUCAO_NORMATIVA_001_DE_25_DE_MARCO_DE_2015.pdf
Acesse também: https://arqueologiaeprehistoria.com/legislacao-brasileira-relacionada-a-arqueologia/
Para aprofundar mais:
Hissa, Sarah de Barros Viana (org.). Apostila de estudos em arqueologia e legislação no Brasil. Belo Horizonte: ed. da autora, 2022.
SGEARQ/DEPAM/IPHAN. Patrimônio Arqueológico Brasileiro: Normas de Preservação, 2006.