Pesquisa arqueológica revela história dos engenhos de Jacarepaguá (RJ) desde o ano de 1590

Por: Geraldo PMJ

A Baixada de Jacarepaguá, um dos bairros da região rural do Rio de Janeiro colonial, hoje localizado na Zona Oeste do Rio de Janeiro, foi um dos maiores produtores de açúcar do município até o final do século 19. O Engenho do Camorim, instalado nessa região da cidade, ainda apresenta construções originais da época, motivo pelo qual foi escolhido para um estudo arqueológico. As pesquisas coordenadas pela historiadora e arqueóloga Sílvia A. Peixoto, realizadas durante seu doutorado em Arqueologia pelo Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, ajudaram a entender e mostrar diversas características da produção de açúcar na região de Jacarepaguá. Foi possível compreender como ocorria a implantação dos engenhos, como era a sua estrutura arquitetônica, os espaços de trabalho, e os objetos relacionados ao cotidiano da produção açucareira. Assim, ao investigar o passado esquecido de um dos bairros mais remotos da cidade, foi possível recordar pessoas e lugares, preenchendo lacunas na historiografia do Rio de Janeiro. A pesquisa não contou com nenhum tipo de financiamento.

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Dra. Silvia Peixoto realizando o registro do nível de uma unidade de escavação. Crédito: Silvia Peixoto.

A equipe do site Arqueologia e Pré-história teve a oportunidade de entrevistar a Dra. Silvia Peixoto. Confira abaixo:

 O que despertou seu interesse em estudar o bairro Jacarepaguá?

Silvia: Sou nascida em Jacarepaguá e vivi lá até meus 35 anos. No entanto, só aos 30 anos, mais ou menos, que eu descobri a antiguidade do meu bairro e que ele teve muitos engenhos no período colonial. A partir de então, eu redescobri o lugar onde eu vivia. Passei a vê-lo com outros olhos e a observar o que desse passado tinha restado. Passei a ler muito sobre ele e a buscar pesquisas que tenham se dedicado a ele. Foi então que notei que muito pouco se tinha investigado desses engenhos, principalmente do ponto de vista arqueológico. E, para piorar a situação, a quantidade de novas construções, de prédios residenciais e comerciais, hospitais e shoppings, em terras que pertenceram a alguns desses engenhos, era assustadora. A velocidade das mudanças que Jacarepaguá sofria, e ainda sofre, é impressionante! E nenhuma dessas obras estava contando com a presença de arqueólogos, que seriam os únicos capazes de impedir a destruição de vestígios que, porventura, pudessem aparecer no solo. Foi então que eu decidi fazer alguma coisa pela região, tomando Jacarepaguá e seus engenhos como tema de pesquisa. A partir daí, era minha missão chamar a atenção para o potencial da área e para as ameaças que estava constantemente sofrendo.

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Dra. Silvia Peixoto com suas colegas de equipe do Museu Nacional, as arqueólogas Angislaine Freitas e Luisa Vidal, durante escavação do Camorim, evidenciado fragmentos cerâmicos e um esqueleto de boi.

 

Qual era o contexto histórico da região entre os séculos 16 e 17?

Silvia: A chamada Baixada de Jacarepaguá, que englobava no período colonial também os bairros do Recreio dos Bandeirantes e da Barra da Tijuca, foi uma das primeiras porções de terra doadas a partir do século 16 para incentivar o processo de ocupação do Rio de Janeiro. As terras começaram a ser cultivadas por uma das famílias mais poderosas à época, os Correia de Sá, que construíram de início dois engenhos, o Engenho d’Água, por volta de 1590, e o Engenho do Camorim, em 1622. Ao longo dos séculos, multiplicaram-se os engenhos, construídos por outras famílias. A principal atividade econômica era a produção de açúcar, é claro, que servia para a exportação, mas outros cultivos também existiam na região, que abasteciam, em menor escala, o mercado interno. Além disso, havia muitos currais de gado, principalmente na área do Camorim e Vargens Grande e Pequena.

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Dra. Silvia Peixoto evidenciado fragmentos de cerâmica histórica nas escavações do sítio Camorim. Crédito: Silvia Peixoto.

Como a escavação e a análise dos vestígios te ajudou a preencher as lacunas?

Silvia: As escavações realizadas no Engenho do Camorim foram muito profícuas. Foram realizadas intervenções no terreno entre a Capela de São Gonçalo do Amarante e o Rio Camorim, que localizaram a área de descarte de um dos espaços produtivos do engenho e os alicerces da própria edificação, ao que tudo indica a casa de purgar. Composta por milhares de fragmentos de materiais rejeitados das atividades cotidianas do espaço de trabalho, essa área de descarte forneceu importantes informações, que permitiram elucidar algumas das questões propostas no projeto original.

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Fragmento de vasilhame cerâmico histórico encontrado nas escavações do Camorim. Crédito: Silvia Peixoto.

Tendo em vista a dificuldade de se caracterizar arqueologicamente os períodos mais recuados de ocupação do Rio de Janeiro, um dos objetivos do projeto era acessar, materialmente, os primeiros séculos de atividade nesses engenhos, especialmente o 17. Foi precisamente esse o recorte cronológico identificado nas escavações realizadas no Camorim, onde, dentre outros materiais, foram evidenciados centenas de fragmentos de louças em faiança portuguesa datadas da 1ª metade do século 17.

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Fragmento de faiança portuguesa encontrada durante as escavações no Camorim. Crédito: Silvia Peixoto.

Isso possibilitou recuar consideravelmente a arqueologia do Rio de Janeiro, tão focada no século 19. Trata-se, inclusive, ao que tudo indica, do primeiro espaço produtivo açucareiro a ser sistematicamente investigado através de escavações não apenas na Baixada de Jacarepaguá, mas no município como um todo. Além disso, o registro arqueológico evidenciado no espaço produtivo do engenho permitiu vislumbrar, através da cultura material, as interações e as maneiras pelas quais os indivíduos escravizados,  indígenas e africanos, usaram e manipularam os espaços e o tempo, bem como negociaram suas identidades através das práticas e das experiências que estabeleceram com a cultura material em seu ambiente de trabalho.

Qual foi a reação dos moradores da região ao seu trabalho?

Silvia: De maneiras um pouco diferentes. Fui muito bem recebida pela comunidade quilombola do Camorim, que apoiou a pesquisas e as escavações o tempo todo. Eles foram fundamentais durante todo o processo. Alguns moradores também se mostraram curiosos e interessados. Porém, pequena parcela da população lidou com certa desconfiança, principalmente moradores que não são ligados ao movimento quilombola, e novos moradores dos prédios recém-construídos. Muita dessa resistência se deve ao fato de que, a partir do registro do terreno como sítio arqueológico, não se pode mais ocupar ou construir no local, o que vai de encontro aos interesses de alguns.

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Arqueólogas Angislaine Freitas e Luisa Vidal (Museu Nacional, UFRJ) e o auxiliar Hérick Almeida (morador do Camorim e membro da comunidade quilombola) realizando escavações no sítio histórico. Crédito: Silvia Peixoto.

Na sua opinião, qual é a importância dos seus resultados para a ciência e a sociedade brasileira?

Silvia: Acho que a pesquisa teve o mérito de investigar uma região subestimada do ponto de vista histórico e arqueológico e que vem sofrendo há anos com a especulação imobiliária, que destrói a passos largos seu patrimônio cultural tão vasto. Lançar luz sobre esse potencial e sobre os perigos que o “progresso” pode trazer para nossa história, é extremamente oportuno, especialmente no momento em que o país vive. Pude ainda, através das pesquisas no Camorim, robustecer a luta da comunidade quilombola local por reconhecimento e espaço para desenvolver suas atividades culturais, herdeiras dos tempos em que o Camorim era um engenho e seus antepassados sua sofrida força de trabalho.

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Evidenciação das estruturas do engenho do Camorim. Crédito: Silvia Peixoto.

Para saber mais:

Em 2016, durante uma das etapas de escavação arqueológica no Camorim, produzimos um pequeno vídeo para o canal Arqueologia em Ação que mostra o trabalho da Dra. Silvia Peixoto e sua equipe. Confira:

 

A tese, produto desta pesquisa, pode ser acessada no link abaixo:

JACAREPAGUÁ, A “PLANÍCIE DOS MUITOS ENGENHOS”: uma arqueologia do sertão carioca , Rio de Janeiro, século XVII ao XIX

Respostas de 4

  1. Quando crianca eu brincava muito perto de um rio que passava dentro de um sitio em Vargem Pequena, bairro de jacarepaguá. Nas margens desse rio havia uma montanha feita de restos de conchas assim como uma infinidade de resíduos de coisas tipo ossos muito muidos. Achava bastante curioso pois nunca tinha visto algo igual.
    Mais parecia uma duna calcificada aquele pequeno morro. Hj adulta e com mais conhecimento me pergunto se nao seria um sambaqui. Se era, talvez tenha desaparecido ja que Vargem Pequena sofreu também uma urbanização desordenada.

  2. Fiquei empolgada com essa postagem, com esse maravilhoso trabalho num nível de mergulhar no tempo esquecendo até de parabeniza. Parabéns! Espero poder pessoalmente ir conhecer esse resgate da historia tão importabte para a historia de nosso bairro.

    1. Olá boa tarde,sou morador do Camorim e gostaria de passar alguns relatos da região.. minha família já tá no Camorim a mais de 100 anos nessa região.

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