As cerâmicas produzidas por populações indígenas brasileiras podem nos ajudar a compreender melhor a história do Brasil. Recipientes cerâmicos Tupiguarani encontrados em sítios arqueológicos na cidade de Araruama (RJ) durante escavações realizadas por Angela Buarque a partir de 1993 lançam luz sobre a história pré-colonial e colonial brasileira. Isso porque, os sítios da região foram ocupados por populações indígenas desde cerca de 2600 anos atrás até meados do século XVI, quando o processo de conquista e colonização já havia se iniciado e o contato com os europeus já ocorria. Os vestígios arqueológicos encontrados nos possibilitam observar as mudanças e continuidades na cerâmica ao longo do tempo, que refletem os processos históricos e sociais que ocorriam na região.
Foram pesquisados sete sítios arqueológicos: Morro Grande, Serrano, São José, Bananeiras, Jardim Bela Vista, Santo Agostinho e Barba Couto. Foram encontrados, ao todo, 14.473 peças, sendo 43 recipientes inteiros e o restante fragmentos. A maior parte das peças pertence a urnas funerárias e a recipientes utilizados para cozinhar e armazenar alimentos. O tipo de cerâmica pertence à tradição Tupiguarani e é também encontrada em diversos outros sítios ao longo do litoral brasileiro. Ela se caracteriza por recipientes de diferentes tamanhos com superfície lisa ou decorada. Dentre as decorações, existem as cerâmicas pintadas e as vasilhas com decorações plásticas, que podem ser de diferentes tipos: corrugada, escovada, ungulada, espatulada, entre outros. Todos esses tipos foram encontrados nos sítios de Araruama. No entanto, as cerâmicas assim como as populações que as produziram, não são estáticas, mas se modificam ao longo do tempo, social e historicamente, o que foi possível observar ao se realizar a análise desses objetos.
Em todos os sítios, tanto no período colonial quanto no pré-colonial, podemos perceber o predomínio de cerâmicas com pasta grosseira, mesmo em peças pintadas internamente com motivos elaborados, o que parece ter sido resultante de uma escolha cultural dos ceramistas que as produziram. A pasta é constituída por argila e antiplástico. O antiplástico é composto por partículas não-argilosas, incluindo material orgânico, fragmentos rochosos, areia, entre outros. Elas podem estar presentes naturalmente na argila ou podem ser adicionadas pelos ceramistas a fim de diminuir a plasticidade da argila, tornando-a mais adequada para ser moldada. Os ceramistas selecionavam a argila e o antiplástico objetivando determinada aparência do produto final, o que no caso dos sítios estudados se tratava de uma aparência grosseira.
Em relação à técnica de confecção predomina o tipo acordelado, que se baseia no preparo de rolos longos e estreitos. Estes são utilizados primeiro para formar a base e, a seguir, os demais são adicionados sucessivamente, formando as paredes dos recipientes. É de grande importância que eles sejam unidos de forma bem firme porque essas áreas de junção são as mais frágeis e mais vulneráveis à quebra durante a secagem, a queima ou uso. Na cerâmica Tupiguarani, há casos em que o acordelado fica muito pouco visível, uma vez que os ceramistas realizam um alisamento das paredes ou uma decoração mais elaborada, que pode ser realizada com as mãos ou com ferramentas, o que une melhor os cordões e não deixa que eles apareçam de forma relevante. Entretanto, há casos em que a marca dos roletes fica aparente nos vasilhames, algumas vezes de forma proposital como um elemento decorativo.
Foi possível perceber a presença da técnica modelada apenas nos apêndices como asas, alças e puxadores. Esses apêndices são presentes apenas no período colonial e são resultado do contato com a louça europeia, não sendo existente no sítio de Morro Grande, onde as datações remontam principalmente ao período pré-colonial, nem em sítios de contato nas camadas que correspondem ao mesmo período. Os primeiros contatos com a louça europeia se deram a partir do século XVI a partir da chegada dos europeus à costa brasileira. Durante este período, as alianças com os indígenas eram de grande importância para que os europeus conseguissem realizar a conquista e a colonização com segurança. Essas alianças eram realizadas a partir dos interesses dos conquistadores, mas também dos interesses dos indígenas, que viam nelas meios de conseguirem ter acesso a determinados objetos e de atacarem seus inimigos.
É importante salientar que a apropriação cultural dos apêndices não se tratou de simples cópia da louça europeia. Isso porque eles eram feitos com o mesmo tipo de pasta e decorados da mesma forma que a cerâmica tradicional Tupiguarani, como é o caso da alça com decoração ungulada e incisa encontrada no sítio Serrano. Isso demonstra que, nesses processos de contato, os ceramistas selecionaram determinados elementos da cultura e da tecnologia europeia a partir de seus próprios interesses e escolhas, adicionando-os à sua cerâmica tradicional e utilizando-as no contexto de sua própria cultura e modos de vida.
No sítio de Morro Grande, onde há predomínio do período pré-colonial, há decoração plástica em muitas vasilhas, sendo que a mais comum é a corrugada que, em geral, aparece em peças de grandes dimensões que eram utilizadas para a fabricação do cauim (bebida produzida através da fermentação da mandioca) e, posteriormente, como urnas funerárias. Há também peças que apresentam a decoração escovada, porém apenas na borda ou na parte inferior das vasilhas. O tipo ungulado também aparece em algumas bordas e sobre o lábio de pequenas peças utilitárias. Em menores proporções, foram observadas também decorações de outros tipos como espatulada, incisa, digitada, entre outras. Já no sítio Serrano, predomina como tipo de acabamento o alisado fino e o grosseiro. Isso porque o século XVI se apresenta como um momento histórico conturbado para os Tupinambá, produtores dessas cerâmicas, em virtude das epidemias trazidas pelos europeus e das guerras que precisavam travar constantemente. Essas guerras aconteciam desde 1525 na região, quando os Tupinambá se tornaram aliados dos franceses com os quais realizavam o escambo. Os maus tratos e ataques dos portugueses aos Tupinambá, assim como as doenças que traziam, a ambição em conseguir escravos além da aliança com os Tupiniquim, inimigos históricos dos Tupinambá, foram elementos que levaram aos conflitos. Além disso, os franceses, inimigos dos portugueses, acirravam o ódio dos Tupinambá pelos lusitanos. Por isso, os Tupinambá impediam que os portugueses ocupassem a região e ainda realizavam expedições guerreiras contra estes e seus aliados Tupiniquim, o que gerava muitas mortes.
Esses fatos podem ter gerado a diminuição do número de ceramistas nas aldeias e um momento de urgência na produção de, sobretudo, urnas funerárias para o sepultamento de um maior número de mortos. A predominância de um tipo de acabamento externo mais simples seria decorrente desse fato. Entretanto, em menor quantidade há também no sítio a presença de decorações plásticas do tipo corrugado, espatulado e escovado, além de outros tipos em uma quantidade ainda menos relevante. O tipo corrugado é observado em peças de grandes dimensões como as urnas funerárias e suas tampas. Diferentemente do sítio Morro Grande, no Serrano a decoração escovada não ocorre apenas em algumas bordas e na parte inferior das peças, mas sobre toda a face externa. Isso pode ser indicativo do período do contato já que a decoração escovada era mais simples de ser feita. Além disso, muitas dessas peças apresentam um escovado feito sem muito cuidado, mostrando a urgência com a qual os Tupinambá precisavam finalizar suas peças durante esse período.
O Serrano foi o sítio onde foi encontrado o maior número de urnas funerárias, caracterizadas como tais pela presença de ossos em seu interior (ainda que em condições precárias) ou pela disposição da urna e das demais vasilhas que a acompanhavam. Isso pode ter acontecido devido ao grande número de mortes durante o período do contato. Tanto em Serrano, quanto em Bananeiras, São José, Barba Couto e Morro Grande é recorrente a presença de enterramentos em urnas com tampas associadas a tigelas pintadas. Dessa forma, algumas urnas que não possuem ossos em seu interior, mas apresentam esse mesmo tipo de arranjo podem ter sido estruturas funerárias, cujos vestígios ósseos não se preservaram. Por ser muito recorrente, é provável que essa prática tenha sido de grande duração na região entre os Tupinambá e seus ancestrais, tendo se originado em períodos muito anteriores à conquista europeia e permanecido ao longo do tempo sem grandes modificações, mesmo após o contato com os europeus.
No sítio Barba Couto, foi encontrada uma urna com restos ósseos e contas verdes europeias em seu interior, que constituíam um colar. Jean de Léry (1980), um francês que esteve na região em meados do século XVI, relata o uso de contas de vidro por parte dos Tupinambá, que as conseguiam através do escambo com os franceses. O relato de Léry mostra que as miçangas eram obtidas a partir do interesse dos Tupinambá, que as pediam, de maneira que não eram objetos impostos a eles pelos franceses. Por outro lado, os franceses as haviam trazido em grande quantidade para traficar, o que mostra o interesse francês em utilizá-las como moeda de troca para conseguir os produtos da terra. A presença de um objeto europeu dentro de uma urna tipicamente Tupiguarani, como é o caso do achado, demonstra como os Tupinambá se apropriavam dos objetos europeus dando a eles significados e valores a partir de suas próprias visões de mundo. Além disso, podiam inseri-los em suas práticas rituais tradicionais como é o caso dos sepultamentos que, segundo Buarque, foi provavelmente um dos domínios que menos sofreu modificações ao longo do tempo, mesmo após a chegada dos europeus. Além dessas contas, também foram encontrados em Barba Couto fragmentos de louça europeia e de asas, o que significa que nele houve contato entre indígenas e europeus em algum momento do século XVI, apesar de não terem sido feitas datações dos materiais oriundos desse sítio. Mas é importante ressaltar que também foram encontrados muitos fragmentos cerâmicos tipicamente nativos.
As relações de contato entre indígenas e europeus ocorridas no século XVI na região de Araruama observadas nas cerâmicas podem nos ajudar a compreender as relações atuais entre os indígenas e a sociedade na qual estão inseridos. Muitas pessoas consideram inadmissível que as populações indígenas possam fazer uso de objetos da modernidade tais como telefones celulares, computadores, tênis, entre outros, pois isso os descaracterizaria enquanto indígenas. Argumentam que deveriam se comportar da mesma forma que há mais de 500 anos atrás. Entretanto, como podemos ver ao longo deste texto, a história indígena é dinâmica e se modifica ao longo do tempo, inclusive a partir das relações de contato com os não-indígenas. Não numa perspectiva de aculturação na qual eles perderiam suas culturas e identidades, mas agregando aos seus modos de vida novos instrumentos e modos de fazer que podem, inclusive, ajudar a manter suas culturas vivas.
Referências Bibliográficas:
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses Indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora do Arquivo Nacional, 203.
BUARQUE, Angela. Étude de l’occupation Tupinambá dans la région sud-est de l’Etat de Rio de Janeiro, Brésil. Paris, 2009. 446 f. Tese (Doutorado em Arqueologia) – Institut d’Art et Archéologie, Université Paris 1 Panthéon – Sorbonne, Paris, 2009.
LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil [1578]. São Paulo/Belo Horizonte: EDUSP/Itatiaia, 1980.
RABELO, Luiza V. A cultura material Tupiguarani dos sítios arqueológicos de Araruama (RJ): O que dados arqueológicos “mudos” têm a dizer sobre as sociedades Tupinambá? Rio de Janeiro, 2018. 194 f. Dissertação (Mestrado em Arqueologia) – Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
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STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil [1557]. São Paulo/Belo Horizonte: EDUSP/Itatiaia, 1974.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. Revista de Antropologia. São Paulo: USP, 1992. v. 35, pp. 21-74.
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Muito interessantes, seus comentários nos ajudam a refletir sobre processos cerâmicos aqui de Conceição dos Ouros – MG.