Por: Enrico Baggio
Uma equipe de arqueólogos publicou, recentemente, na revista Science Advances, a identificação de uma concha arqueológica encontrada na Caverna de Marsoulas, na França, como um antigo instrumento musical. A concha pertence a uma camada arqueológica datada de em torno de 18,000 anos atrás, ainda no Paleolítico, e é provavelmente uma descoberta inédita para esse contexto. Segundo os pesquisadores, a descoberta dessa concha, que tem uma sonoridade reverberante, profunda e forte, joga luz sobre uma dimensão musical antes desconhecida para o contexto das sociedades do Paleolítico Superior.
A caverna de Marsoulas foi descoberta como uma caverna decorada por arte rupestre em 1897, mas a concha só foi encontrada em 1931. Apesar da descoberta ainda na primeira metade do século XX, a concha só foi identificada e publicada como um instrumento musical recentemente, mais de oitenta anos depois. Isso porque, na época, apesar de ter sido interpretada como uma descoberta excepcional, os arqueólogos haviam achado que o objeto era um copo cerimonial sem alteração humana.
Entretanto, em uma nova análise, a equipe de arqueólogos coordenada por Carole Fritz, da Universidade de Toulouse, encontrou diversas evidências de alteração humana na concha. Esse novo estudo concluiu a partir dessa nova análise que o instrumento não era um copo cerimonial, e sim um instrumento musical chamado, em tradução livre, de “chifre de concha”, em referência aos instrumentos de sopro feitos a partir de chifres de alguns animais. E o instrumento é ainda funcional. Um músico foi capaz de extrair sons similares às notas dó, dó menor e ré a partir da concha.
Segundo os pesquisadores, a concha estava associada com outros artefatos arqueológicos da caverna, como ferramentas feitas a partir de cristais e artefatos feitos de ossos de cetáceos (animais como as baleias e golfinhos). Além dessas ferramentas, a caverna é decorada com artes rupestres, feitas principalmente com um pigmento avermelhado. Já a concha em si pertence ao molusco Charonia lampas e tem grades proporções, com 31 centímetros de comprimento e 18 centímetros de largura.
Nesse novo estudo os pesquisadores repararam, por exemplo, que partes da concha (como o lábio exterior e o ápice), haviam sido modificadas por humanos. As modificações no lábio exterior foram feitas por impactos que retocaram aquela parte da concha possivelmente para tornar o objeto mais fácil de segurar. O ápice da concha também foi quebrado. Uma série de golpes foi aplicada de maneira organizada naquela região a fim de criar um orifício. Os pesquisadores destacaram que, além da organização dos impactos, que por si só já sugere uma intervenção humana, o ápice é a parte mais sólida e robusta da concha, e que não poderia ter sido arrancada por impactos naturais, como os causados por ondas. As intervenções humanas, entretanto, não param por aqui. Além do furo criado pela quebra do ápice, outros furos foram feitos nas partes internas da concha. Segundo os pesquisadores, esses furos internos, alinhados com o furo do ápice, serviram para passar algum instrumento que facilitaria o caminho do ar para dentro da concha, como um tubo para sobrar. Outras evidências reforçaram essa suspeita, como a presença de estria nos furos internos (possivelmente causado pelo deslizar frequente do tubo) e a presença de um composto de matéria orgânica no lado externo do ápice, que pode ter sido cera ou resina utilizada para fixação do tubo. Ainda segundo eles, o tubo pode ter sido feito, por exemplo, a partir do osso de um pássaro.
Os pesquisadores utilizaram tecnologias modernas para algumas dessas análises. Foi a partir de uma tomografia da concha que os pesquisadores puderam visualizar os furos internos feitos no objeto, criando a hipótese da inserção do tubo. E foi graças a uma modelagem 3D da peça feita por fotogranometria que os pesquisadores puderam ver e destacar, no processamento das imagens, pigmentos vermelhos feitos em quase toda a parte interna da concha. Os pigmentos eram, em sua maioria, pontos vermelhos com tamanhos aproximados às pontas dos dedos humanos, associados com linhas da mesma cor. O interessante dessa pintura interior da concha, além de ser mais uma evidência da interação humana e de uma atribuição simbólica ao instrumento é que ela é similar com às pinturas rupestres encontradas tanto na Caverna de Marsoulas, onde a concha foi encontrada, quanto nas cavernas da Cantabria, na Espanha.
A concha de Marsoulas é um item único no contexto Paleolítico europeu e possivelmente mundial. O instrumento musical pré-histórico carrega uma grande importância, jogando luz sobre uma dimensão ainda pouco conhecida da pré-história, conectando as pinturas do instrumento com as artes rupestres e sugerindo uma conexão entre o contexto de Marsoulas e o contexto das cavernas Cantabrianas.