Por Gabriel Peixoto
Quando pensamos em arte grega, pensamos logo em alvas e incompletas esculturas de mármore ou em enormes tempos copiosos que dominam a paisagem. Deixamos frequentemente de lado outras formas de arte, como as chamadas “artes menores” – o próprio termo revela nossa irreverência perante essas -, que incluem as joias, terracotas, estatuetas de bronze ou até as artes “perdidas” da tecelagem e de outros materiais frágeis às ações do tempo (ou ainda outros objetos que alguns não chamariam de arte por si só: como os mosaicos ou as moedas).
Enfim, a cerâmica – o material mais recorrente na vida de um arqueólogo – também é tratada, de certa forma, com outros olhares. Rapidamente: há abordagens que chamamos de histórico-culturais, que analisam as formas da cerâmicas e suas funções “úteis”, e abordagens fenomenológicas, que analisam os troncos das vidas dos materiais (suas materialidades e suas agências – para saber mais, ver Hodder), dentre outras abordagens. Por um lado, a cerâmica foi utilizada no mundo antigo para diversas e distintas finalidades, desde recipientes para alimentos e bebida, objetos do dia-a-dia, componentes arquitetônicos, até objetos votivos ou de culto.
Nessa postagem vamos falar de um vaso específico que demonstra de forma clara uma das características mais marcantes da arte grega. Primeiramente, o recipiente em questão é um kylix (κύλιξ) de pinturas-negras ático, produzido por volta 560-550 a.C. e encontra-se hoje no museu de Artes Finas de Boston.
A decoração externa é uma cena que alude ao poema Homérico da Odisseia (canto X, mais especificamente os versos 220-250), em que Odisseu vai se encontrar na ilha de Eeia, casa da feitiçeira Circe. No vaso, vemos Circe no centro (pintada originalmente com um pigmento branco – como de costume para mulheres na técnica de pinturas-negras -, resquícios apenas na perna e na mão esquerda, ver imagem 1; a feitiçeira esta nua também, colaborando com as narrativas de “bruxa” e “destruidora de homens”), oferecendo uma poção venenosa à um tripulante da nave de Odisseu, que já está meio-transformado em Javali. Ao lado dele, vemos outros dos companheiros já transformados em outros animais – no poema Homérico, em contrapartida, os tripulantes são transformados apenas em porcos. Na extrema direita vemos Euríloco, o tripulante que desde cedo havia suspeitado de Circe, fugindo em direção ao barco para avisar Odisseu o que se passa, o Heroi, no entanto, ja se encontra na extremidade esquerda, tendo já ultrapassado um tripulante meio-transformado em Leão, com a espada desbainhada avançando em direção à Circe.
Essa técnica de narrativa é chamado de sinóptica ou complementar (komplettierend), que se utiliza de diversos episódios numa só cena: todos os micro-episódios sucessivos são postos juntos num só momento de simultânea encenação – sem deixar que nenhuma personagem apareça mais do que uma vez. Esse método permite o aumento da efetividade da narrativa, pois as ações estão à decorrer ao mesmo tempo em que estão concluídas. No vaso também conferimos inscrições, que nos ajudam a identificar as personagens – revelando outra característica essencial da arte grega: iconografia ligada às inscrições.
Para saber mais:
HODDER, Ian (2012). Entangled: an Archaeology of Relationships between Humans and Things. Wiley-Blackwell. West Sussex, UK.
LOURENÇO, Frederico (2018). Odisseia de Homero. Quetzal Editores, Portugal.
PLANTZOS, Dimitris (2018). The Art of Painting in Ancient Greece. Kapon Editions, Atenas, Grécia.
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