Calcário, talvez você não conheça esse nome, mas certamente conhece seus produtos e seus usos: O cal, cimento, corretor de solo, adubo químico, pedra ornamental e até revestimento na construção civil.
A nossa história com essa rocha é antiga, sendo até utilizada na construção da grande pirâmide de Gizé, Quéops. E nossa grande epopeia de viagem no tempo começa ali, por volta de 500 antes da era comum com Heródoto, filósofo grego. Ele notou, que nas pedras da parte externa da pirâmide havia uma marca um tanto estranha, uma grande espiral com as voltas bastante juntas e inúmeros segmentos.
Essa espiral era na verdade uma carapaça de um tipo de protozoário capaz de fazer concha de carbonato de cálcio, os foramníferos. Estes micro-seres são e foram extremamente abundantes pelos oceanos do mundo todo, fazendo parte do plâncton, suspensos na coluna d’água ou no fundo do mar. Suas carapaças acumuladas, assim como conchas e restos de outros seres vivos formam as rochas carbonáticas, dentre elas, o calcário.
Sim, as pedras que fazem a pirâmide de Gizé são feitas de um mar antigo. O norte da África, entre o Jurássico até o Neógeno, era separado da Eurásia por um mar chamado Téthis. Tanto que no Saara encontramos fósseis marinhos de grandes répteis marinhos como tartarugas, mosassauros e plesiossauro. Como este mar se manteve aberto por muito tempo, temos cemitérios de baleias primitivas no Egito, Wadi Al-Hitan.
No contexto sul-americano, o nascimento e abertura do Atlântico Sul, separou nosso continente do africano, gerando uma série de regiões mais baixas na borda de ambos os continentes, as chamadas bacias sedimentares. Locais onde naturalmente se acumulam mais sedimentos. E à medida que o mar avançava sobre estas regiões, carapaças, conchas, esqueletos e restos de animais e plantas se acumulavam gerando fósseis. Como muitos destes seres possuíam carbonato de cálcio em sua composição, a rocha gerada foi o calcário.
Nosso planeta como é ativo, com vulcões, terremotos e outras forças acaba subindo e descendo pacotes de rochas. Um deles é a Bacia Potiguar, localizada nas porções norte do Rio Grande do Norte e nordeste do Ceará. Essa exposição de calcário não ficou intocada desde sua formação, com as chuvas e rios, mudança climática, estas rochas fraturaram, foram perfuradas e dissolvidas, formando as conhecidas cavernas.
Cavernas não são ambientes alienígenas para nós. São locais de grande respeito, temor e até adoração. Seja pela presença de dragões, escuridão, fonte de abrigo e água, sempre houve uma conexão entre elas e a humanidade. Estes espaços foram um dos primeiros a nos albergar e onde pudemos deixar nossos registros mais simbólicos, as famosas pinturas rupestres. Como abrigo de diversas espécies humanas, preservando suas ferramentas, corpos e arte, as cavernas têm uma importância ímpar na preservação do registro e do patrimônio arqueológico.
Elas também albergaram diversas espécies da megafauna pleistocênica, sobretudo na Europa, como ursos e leões das cavernas. Além de abrigos, elas foram e são armadilhas naturais extremamente efetivas na preservação de diversas criaturas: preguiças e tatus gigantes, macacos não-humanos, urubus, corujas, gaviões, roedores, cavalos, lhamas, toxodontes, elefantes, emas, jacarés, tartarugas e até cachorros selvagens já foram encontrados em cavernas brasileiras, vítimas de queda ou de se perderem pelos labirintos destas cavidades.
Como fontes primorosas de informação do passado, seja pela gênese de suas rochas ou servindo de albergue ou sepulcro da vida antiga, as cavernas e o calcário são patrimônios essenciais para o estudo do passado. No Brasil, para a história da ciência, estes locais têm mais um valor a agregar, graças às pesquisas de Peter William Lünd. Naturalista dinamarquês, foi o primeiro a se debruçar sobre os aspectos do passado do interior de Minas Gerais, no município de Lagoa Santa. Descrevendo uma fauna incrível de mamíferos da era do gelo, dentre eles, o gênero Smilodon, conhecido como tigres-dentes-de-sabre. Além da megafauna, se debruçou em escavar restos humanos e escrever sobre as incríveis formações geológicas dentro das cavernas de Lagoa Santa em Minas Gerais.
Sob a tutela deste cidadão estava nascendo e sendo construído os pilares da paleontologia, arqueologia e espeleologia brasileira. Evidentemente ele não foi o primeiro e nem o único a se debruçar sobre elas. Mas o seu trabalho conecta de maneira tão intensa a relação entre estas 3 ciências e é tão influente, até hoje, que muitos o colocam como pai da paleontologia brasileira e um dos fundadores das duas outras ciências.
Após essa breve apresentação, é impossível discordar da importância e do peso da história que as cavernas e suas principais rochas formadoras, o calcário, tiveram e tem para a humanidade. Além de guardiãs da história ambiental, paleontológica e arqueológica, essa rocha é utilizada em grande escala na construção civil. E por isso se encontra ameaçada.
Desde a constituição de 1988 o Brasil inclui as cavidades subterrâneas, dentre elas, as cavernas como bens da união. É prevista a exploração e alteração de cavernas com baixa prioridade, onde suas características, fauna e estrutura não são incomuns. Tornando as de alta prioridade intocáveis, contudo, em 12 de janeiro, um decreto lei sancionado pelo atual presidente Jair Bolsonaro altera essa regra. Permitindo a exploração de cavernas raras e com um patrimônio inigualável.
O fato de cavernas que são sítios arqueológicos estarem mais bem amparados pela legislação para a sua proteção não é suficiente. Nesse quesito (amparo legal), a paleontologia e seu patrimônio, os fósseis não humanos, estão em franca ameaça. Cavernas com fósseis diversos, completos e informativos vivem aparecendo por todo o país: Poço Azul, Lagoa Santa, Olho d’água da escada, Lajedo de Soledade, Toca da Boa Vista, Lapa dos Brejões e tantas outras mais.
A menos que consigamos que esse decreto seja revogado e novos amparos legais ao patrimônio fossilífero e espeleológico sejam feitos, não podemos descansar. Em 2021 a empresa de cervejas Heineken conseguiu uma concessão para a construção de uma fábrica na região de Lagoa Santa, em Minas Gerais. O mesmo sistema de cavernas que foi estudado por Lünd e inúmeros pesquisadores depois e que serve de abrigo para inúmeras espécies animais, além de garantir o abastecimento de água da região. Esta situação ilustra que estes espaços são alvo de grande disputa e que a luta pela sua preservação deve ser contínua.
Devemos mesmo, como sociedade, acreditar que este lucro tenha mais valor que nosso bem-estar, que nossa história e que o nosso legado para as próximas gerações? Ainda mais quando ele não será repartido entre nós?
Materiais adicionais:
Cemitério das baleias Wadi Al-Hitan
CECAV e leis de proteção às cavernas
Documentário: O mistério do Poço azul
Peter Lünd (Biblioteca Nacional)
Decreto recente sobre as cavernas
Caso da Heineken em São Leopoldo
SIGEP – Comissão Brasileira de Sítios Geológicos e Paleontológicos