O que significa “civilização” para os arqueólogos?
Desde a segunda metade do século 20, pesquisadores têm utilizado, principalmente, o termo “civilização” para se referir às sociedades urbanizadas pré-coloniais do continente americano. O termo, no entanto, é utilizado desde o século 18 pelo economista francês Victor Mirabeau, onde ele associa o termo com sociedades que possuem religião.
A definição da palavra “civilização”, como a conhecemos hoje, começou a ser construída apenas no final do século 19, com os textos do antropólogo estadunidense Lewis Morgan, de 1877, onde o autor realizou uma classificação das sociedades baseado numa perspectiva progressista, e ultrapassada, de evolução cultural, na qual a civilização seria o ápice de uma sociedade, em oposição à “selvageria” e à “barbárie”, que seriam sociedades “menos evoluídas”. Este antropólogo definiu sociedades civilizadas como aquelas que possuíam escrita e uso fonético do alfabeto.
Já na arqueologia, o termo “civilização” foi adotado e difundido pelo arqueólogo australiano Vere Gordon Childe, principal nome da escola histórico-cultural da arqueologia. Childe propôs a identificação de mais caracteres para definir uma civilização. Além da escrita, sociedades civilizadas teriam divisões de riquezas, estrutura monumentais, matemática e centros urbanos onde não haveriam práticas agropecuárias.
No contexto das Américas, a maioria dos pesquisadores classificou as sociedades pré-coloniais como “civilizações” seguindo uma definição muito similar àquela proposta pelos arqueólogos estadunidenses Gordon Willey & Philip Phillips para os períodos “clássico” e “pós-clássico” que, em suma, seriam sociedades marcadas pelo processo urbanístico.
Importante notar, portanto, que a ideia de civilização como uma sociedade “mais evoluída” não se popularizou na arqueologia, sendo que, atualmente, ela só é usada, basicamente, para se referir às sociedades urbanas. Ou seja, sociedades que desenvolveram cidades, mas não necessariamente que dominavam algum tipo de escrita, como propuseram Morgan e Childe anteriormente.
Aqui, na América do Sul, por exemplo, a escrita nunca foi desenvolvida, nem sequer pelo Império Inca, considerada a última “civilização” pré-colombiana a ser extinta em 1572.
Origem e desenvolvimento das sociedades urbanas (civilizações) da América do Sul
Mas o processo de urbanização já é observado desde aproximadamente 5700 anos atrás, com a cultura Caral, nas terras baixas do Peru. No entanto, ainda parece haver um hiato entre a civilização de Caral e aquelas que vieram depois. Os dados atuais apontam que a cidade de Caral foi abandonada há cerca de 3800 anos.
Foi apenas quase um milênio depois, há cerca de 2900 anos, que uma nova sociedade urbanizada se desenvolveu, mas desta vez no Andes Peruanos. Trata-se da civilização Chavín, que durou até 2200 anos atrás. Pouco depois, há cerca de 2100 ano (ou, seja 100 anos Antes da Era Comum), surgiu a Civilização Nazca, nas terras baixas do Peru. Contemporânea à Nazca, surge a civilização Moche, no litoral peruano. Ambas as civilizações encontraram o seu fim entre os anos de 800 e 850 da Era Comum.
Nazca foi dominada pela civilização Wari, que surgiu no ano 500 EC e se expandiu pelas terras altas e baixas do Peru. Já o fim da civilização Moche não possui as mesmas evidências deste domínio como ocorreu em Nazca. Se os Wari subjugaram os Moche, optaram apenas por deixar a cidade abandonada ao invés de ocupá-la. Da mesma forma, as cidades da civilização Wari foram abandonadas a partir de 1100 EC, apenas 100 anos depois do início da civilização Inca, na cidade de Cusco.
A civilização de Tiwanaku se originou cerca de 600 EC no norte do Chile e Argentina, se expandiu até a Bolívia e o Peru, teve contato com a sociedade Wari, e desapareceu mais ou menos durante o mesmo período da civilização Wari – mas ainda não há um consenso entre os arqueólogos sobre a data exata de quando isso ocorreu.
De todo modo, alguns autores sugerem que a cidade de Cusco, que se tornou a capital Inca, se desenvolveu a partir das populações Wari e Tiwanaku que abandonaram suas cidades. Neste sentido, a civilização Inca não teria dominado os Wari e nem os Tiwanaku, mas tendo, na verdade, se desenvolvido a partir destas. Afinal, Império Inca só começou sua expansão dominando outras cidades a partir do século 15. Esta hipótese arqueológica de origem dos grupos Inca, no entanto, não corrobora com a tradição oral registrada etnograficamente durante o período da conquista espanhola, no século 16. A tradição oral reflete uma história de um casal de líderes que habitavam uma caverna nos Andes e fundaram Cusco. É importante lembrar, contudo, que as tradições orais são frutos de memória social e não necessariamente condizem com as evidências de estudos científicos.
Um século antes de Cusco surgir, aproximadamente 900 EC, as civilizações de Chimú e Cachapoya, respectivamente nas terras baixas e nas terras altas, do Peru, se desenvolveram de maneira independente. Ambas, no entanto, foram dominadas pelo Império Inca no ano de 1470 EC. O Império Inca acabou por se expandir para o norte até próximo da atual fronteira da Colômbia com o Equador, e ao sul até o atual centro do Chile e Argentina. Esta expansão foi, principalmente, sobre civilizações menores.
No atual território brasileiro, o termo civilização nunca foi aplicado a grupos ameríndios, ainda que alguns grupos tenham desenvolvido grandes aldeamentos. No entanto, o processo de urbanização não ocorreu.
E quanto a Mesoamérica?
No caso das Mesoamérica, todas as sociedades entendidas hoje como “civilizações” desenvolveram escrita, começando pelos Olmecas, a partir de 3200 anos atrás. A civilização Olmeca desapareceu um milênio depois e, ainda hoje, não há uma conclusão entre os arqueólogos sobre o que levou os Olmecas a desaparecerem. Para alguns autores, as evidências do contato entre Olmecas e Maias seriam também resultantes da migração das populações Olmecas para as cidades Maias. De todo modo, a única outra civilização Mesoamericana que desapareceu antes do domínio espanhol foi Teotihuacan, que se desenvolveu a partir de cerca do ano 1 EC, e colapsou durante o século 7. Ou seja, séculos antes da reocupação pelos Aztecas, ou do próprio surgimento da civilização Azteca.
Por fim, todas as civilizações mesoamericanas se desenvolveram há menos de 3,5 mil anos atrás, possuíam escrita e, com exceção das civilizações de Teotithuacan e Olmeca, todas as demais perduraram até o século 16, quando os espanhóis massacraram os povos nativos e destruíram todas as civilizações, tais como Azteca, Maia, Mixteca, Zapoteca e Tolteca. Boa parte das populações, no entanto, permaneceram vivas, sendo absorvidas pela sociedade ocidental moderna, mas ainda injustiçadas. Processo este que ocorre com povos nativos de todo o continente americano.
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Sobre o autor
J. C. Moreno de Sousa é arqueólogo, professor de pré-história, especialista no estudo de artefatos de pedra lascada, arqueologia experimental e no estudo da ocupação inicial das Américas. Tem título de doutorado em arqueologia pelo Museu Nacional (UFRJ) e pela University of Exeter (Inglaterra). Atualmente é pesquisador de pós-doutorado do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Foi criador da rede de divulgação científica Arqueologia e Pré-História, da qual participa atualmente como colaborador. Foi recém aprovado em vaga para professor adjunto na Universidade Federal de Rio Grande (FURG).
Sou estudante do segundo grau e demasiadamente facinado por arqueologia. Agora que estou escrito gostaria que envissem para mim todas as atualizações novidades que houverem. A Historia me encanta .