Quando lidamos com o passado, ainda mais no nosso universo temos um desafio enorme chamado segunda lei da termodinâmica. Esse mesmo princípio que explica por que um corpo quente esfria e as coisas se transformam de maneira irreversível.
Pensem comigo, um organismo ao morrer vai apodrecer por intermédio de bactérias e outros microrganismos. Junto disso, o Sol, a temperatura, reagentes químicos no solo ou na água vão deteriorar ou alterar a composição deste ser. Como o ciclo da vida em Rei Leão, o organismo desaparece, se tornando nutrientes para o ecossistema, na ecologia chamamos isso de ciclo da matéria.
Esse ciclo da matéria raramente é quebrado e os restos dos organismos, ao invés de se perderem no solo, podem ser petrificados, dando origem aos fósseis. Todo esse entendimento de como um resto de um organismo pode vir a ser um fóssil, suas transformações, desafios e vieses que sofre, chamamos de tafonomia e já a abordamos por aqui
Para além dos ossos, peles mumificadas ou congeladas, esqueletos, conchas ou armaduras, os fósseis também podem ser evidência de como esses animais viveram, seus comportamentos e hábitos: Os icnofósseis, que são registros das interações entre os seres vivos e seus substratos. Particularmente úteis para registrar a vida quando ela não deixou restos corporais, o que é muito comum com invertebrados, sobretudo os de corpos mais moles.
Tendo estas dificuldades, o paleontólogo precisa de virar nos 30 para conseguir retirar informações de materiais que são incompletos, enviesados e, na maioria das vezes, enigmáticos. E para tal, sempre bom ter um olhar atento a detalhes. Vamos 2 histórias de fantasmas aqui para vocês, sobre como olhares atentos nos revelaram o inesperado:
O paguro fantasma
Indo para as praias, sobretudo algumas que tenham pedras com poças de marés veremos várias criaturas diminutas: Caranguejos, ostras, algas, mexilhões, cracas, peixes, com sorte camarões ou mesmo corais e os eremitas.
Caranguejos eremitas, paguros ou só eremitas são crustáceos que, diferentemente dos outros, possuem o abdômen mole, sem qualquer sinal de um exoesqueleto mais duro, tornando-os vulneráveis a predadores. Daí passaram a ocupar conchas de caracóis/caramujos como forma de defesa.
Ainda nos faltam dados para saber se eles ocuparam as conchas primeiros e amoleceram como consequência ou se amoleceram primeiro e daí ocuparam as conchas. Independente disso agora temos um caranguejo numa concha. Legal, e o que tem mais?
Bem, muito animais marinhos precisam viver fixos no solo/substrato do fundo do mar, seja filtrando alimento ou esperando alguma criatura passar. E muitas vezes, esse fundo precisa ser duro, fixo, como uma pedra, esqueleto ou concha e não areia. Conseguem ver o desenrolar da história? Havendo animais que precisam de substrato duro para se estabelecer e um local vago em que possam se instalar, a mistura é certeira para haver uma incrustação.
Então qual a diferença entre uma concha com um caranguejo dentro e uma que está exposta porque o caracol morreu?
Como o caranguejo sai andando com a concha por aí, ele corre menos risco de ser soterrado por areia ou lama. Prolongando o tempo de exposição da concha, ele facilita o estabelecimento de epibiontes, seres vivos que crescem sobre outros. E isso não é apenas interessante sob a ótica de aspectos ecológicos, aumentando a diversidade local, é fundamental quando falamos de tafonomia.
Ao evitarem o soterramento e passearem com a concha, os eremitas e seus associados enchem a concha de vieses, marcas, traços e outras evidências, que quando não levadas em conta, podem gerar uma interpretação paleoambiental e paleoecológica completamente distinta.
Determinados caramujos atuais vivem enterrados sob a areia, porém quando observamos seus fósseis, vemos que estão cheios de animais filtradores que não poderiam viver soterrados. A conclusão que poderíamos chegar é que apesar da forma, estes caramujos viviam sobre o sedimento e ao longo do tempo passaram a se enterrar. Algo bastante interessante para se pensar a evolução do grupo, se não fosse o fato de que isso pode ser culpa de um eremita que não se fossilizou.
Mas se o caranguejo vive dentro da concha, por que não preservou ele junto dela?
Bem, a tafonomia nos prega peças em inúmeras situações. A primeira é que a maior parte do paguro não tem exoesqueleto duro, então difícil de preservar. A outra é que as partes que são duras, são todas articuladas e basta uma onda forte para separar todos esses pedaços uns dos outros e da concha. E o terceiro motivo é que quando a concha é soterrada com muito sedimento, areia ou lama, o caranguejo a abandona enterrada, enquanto escava para a superfície, abandonando-a em um local já propício a sua preservação.
Mesmo que difícil, existem fósseis de eremitas nas suas conchas, porém, temos de ter os olhos abertos para os outros indícios que eles deixam nas conchas, seja na forma de organismos associados ou marcas mesmo. Uma bem característica é a ‘faceta pagúrica’.
Quando um caramujo se arrasta por aí, ele dificilmente arrasta a concha no substrato, deixando-a lisa e quase sem marcas. Contudo o caranguejo, a arrasta, deixando uma marca muito característica de desgaste próximo a abertura, sendo um bom indicativo da ocupação do paguro.
Contudo, nem sempre ela se preserva. Assim como uma cena do crime, onde os detetives juntam todas as evidências para gerar o melhor cenário possível do que aconteceu e assim poder ir atrás dos criminosos, o paleontólogo ou arqueólogo também precisa.
A faceta é muito boa, quase tão boa quanto uma digital na cena do crime, mas não deve ser a única evidência. O comportamento gregários dos caranguejos também faz acumulações de conchas que são incomuns, sendo outra evidência importante.
Mas, de longe, a mais proeminente e fácil de perceber são os seus organismos associados.
O verdadeiro zoológico que ele possibilita nas conchas é uma das evidências mais fortes de que eles estiveram ali. Não apenas as criaturas presentes são importantes, afinal, algumas evoluíram para serem seus comensais, como a forma e os locais da concha onde eles ocorrem também. É uma área que se precisa de mais estudos, sobre a fauna associada, sobre as aglomerações e refinar o nosso entendimento, para que assim, consigamos ler o passado e encontrar estes fugazes paguros fantasmas.
Bem, se gostaram dessa história espera só pela outra:
Um verme, um caracol e um coral
Verme é um nome genérico para aquelas criaturas sem pernas e que vivem rastejando por aí, muitos não possuem olhos e nos acostumamos a pensar em todos como parasitas, o que não é verdade. Dentro dessa caixa existem inúmeros filos, planos corporais e criaturas diferentes com histórias evolutivas, ecologias e biologias tão distintas quanto a sua e a de uma mosca.
Um destes filos é o Annelida, que contempla os “vermes” anelados como minhocas, sanguessugas e poliquetas. Tradicionalmente é dividido os grupos internos de acordo com a presença e quantidade de cerdas, uma estrutura que lembra pelos, usada para defesa, deslocamento ou proteção. Contudo, inúmeras mudanças foram e continuam sendo sugeridas para tentar organizar este grupo de animais, inclusive com a inclusão de outros vermes, a princípio, muito diferentes.
Com as mudanças de definição do filo, novos grupos acabaram sendo incluídos, dentre eles os Sipuncula. Parecem com minhocas um pouco mais arredondadas, com um corpo em forma de barril com uma projeção extensível onde fica a boca. Seu corpo, por possuir essa região mais larga os levou a serem chamados de peanuts worms ou vermes amendoim. Ainda são conhecidos poucas espécies em relação a outros grupos e por conta de seu corpo mole, sem biomineralização, possuem registro fossilífero raríssimo, com 3 espécies conhecidas.
Contudo, alguns destes animais vivem em simbiose com corais, habitando as partes mais internas do esqueleto. E não é uma relação parasítica, em ambientes com alta taxa de sedimentação, onde sempre tem areia, lama e argila caindo, os sipuncula impedem que os corais sejam soterrados, arrastando-os para fora da areia. Em contrapartida, o esqueleto destes corais é adaptado a produzir cavidades para os vermes se esconderem de predadores, parasitas e outras ameaças.
Como forma de escapar de predadores os sipuncula se escondem em conchas vazias de caramujos. Essas ocupações muito se assemelham as do paguro, com a principal diferença sendo o deslocamento, sem pernas, os sipúnculos rastejam mais vagarosamente ou sequer se deslocam quando ocupam uma concha. Essa situação cria um hábitat favorável à instalação dos corais que fazem simbiose com estes vermes, não sendo incomum a presença deles e mesmo em corais mais crescidos, uma pequena concha de base.
Apesar de não ser incomum existem corais que conseguem crescer e se estabelecer bem em substrato mole, crescendo numa taxa mais rápida que o sedimento poderia cobri-los.
Crescer sobre uma concha vazia ou ter um verme carregador é uma forma de conseguir evitar isso de maneira facilitada, como saberíamos a diferença entre um e outro sem estas cavidades que os corais geram?
Tanto no paguro, quanto no Sipuncula, seu papel é, fundamentalmente, alterar as histórias tafonômicas da concha do gastrópode e do organismo que participam da simbiose, quaisquer que estes sejam. Esse processo é chamado de engenharia tafonômica, onde a presença e atuação de um organismo altera significativamente as chances de outro fazer parte do registro fossilífero e o quão completo será essa evidência.
Em ambas as histórias a paleontologia entra como forma acessória de nos transportar para tempos anteriores à nós mesmos e como no caso dos icnofósseis, essas simbioses nos permitem enxergar os fantasmas de simbiontes que não ficaram preservados. E por mais instigante que estas histórias sejam, elas demoraram anos para serem primeiramente contadas. Em inúmeros casos, nas coletas paleontológicas, por muito tempo, se preferiu coletar as conchas e materiais que estivessem em melhor estado e pouco adulterados pela tafonomia, justamente para ser um bom espécime para descrição de novas espécies e como consequência, inúmeros materiais incrustados, perfurados, quebrados ou danificados, estavam sendo deixados em campo ou em estantes em museus. Foi com o olhar atento ao presente e nessas simbioses que novas descobertas puderam ser feitas.
O ‘X’ marca o lugar do tesouro, mas só iremos encontrá-lo se soubermos ler o mapa, portanto, mais importante do que um olhar atento é também ter a mente aberta para novas possibilidades. As grandes revoluções da ciência (eu, Pedro Tolipan, advogo) que vem muito mais da mudança de olhar sobre os mesmos materiais do que de inovações técnicas de exame de materiais, o inesperado sempre esteve ao nosso alcance, bastava reconhecer.
E é com essa mensagem que eu deixo aos leitores, as vezes um buraco, um incrustante pode ser muito mais do que mero artefato.
Referências:
Evolutionary palaeocology of symbiosis between bryozoans and hermit crabs: https://doi.org/10.1080/10292389409380497
Antiquity of scleractinian-sipunculan symbiosis: https://www.app.pan.pl/archive/published/app46/app46-309.pdf
Bryozoan as taphonomic engineers, with examples from the Upper Ordovician (Katian) of Midwestern North America: https://doi.org/10.1111/let.12320
Legal a matéria. Parabéns!