Nossos mortos, ….nossos órfãos?

Reprodução autorizada do texto de autoria da Prof.ª Dr.ª Sheila Mendonça de Souza, publicado primeiramente no site do Museu de Arqueologia de Itaipu

Há dezenas de milhares de anos nossos ancestrais Neanderthais já tinham seus lugares de mortos, sepultando e cuidando dos seus ancestrais. Hoje, centenas de diferentes ritos funerários são praticados pelas muitas religiões humanas, e acompanham os mortos ao seu lugar de descanso final. Talvez impressos em nossos cérebros ancestrais, a relação afetiva e respeitosa com os que se foram tem sido testemunhada até mesmo entre animais.

Cemitérios são terras sacralizadas, lugares de respeito e reflexão. Lugares onde se retorna para rever, reviver e buscar a sabedoria para viver. Perturbar os mortos e seus lugares é uma conduta inadequada, criticada, até mesmo punida. Mas os lugares de mortos por vezes sucumbem ao tempo e a sucessão das camadas de vida que fervilha sobre a superfície deste planeta, cada vez mais acelerado em suas mudanças. O que é feito dos solos sagrados, do culto aos mortos, das suas festas e celebrações? Estamos deixando nossos mortos órfãos?

Preservar respeitosamente lugares de mortos é um princípio, e independe da religião. Preservar um lugar de mortos de grande valor histórico e arqueológico, é garantido por lei. Em tantos lugares do mundo hoje se defende o direito dos mortos de permanecer em seus lugares de descanso, onde repousam seus ritos sagrados, onde foram preparados e apaziguados, onde escolheram descansar. Mesmo a sua remoção cientificamente justificada tem sido objeto de discussão ética; seu retorno e reenterro em seus locais sagrados é bandeira de tantos povos originários. Exigimos e repatriamos, dando sepultura digna aos nossos, de diferentes maneiras, e em diferentes situações. O que está em seu lugar, ali o deixamos.

Mas o que dizer da orfandade dos mortos, esgarçados pela passagem do tempo, perdidos de seus descendentes diretos no emaranhado de povos e lugares que os sucederam? Mortos órfãos, …quem é por eles?

Neste momento, no sítio arqueológico mais antigo do litoral do Rio de Janeiro, um dos mais antigos do Brasil, há mortos órfãos aguardando por seu destino. Protegidos por longo tempo, estão agora novamente sob ameaça de uma nova morte. Não se trata apenas de remover seus pobres restos mortais. No sambaqui de Camboinhas, em Itaipu, Niteroi, está confirmado que há um cemitério: um lugar de mortos. Sua antiguidade, cerca de 7.000 anos, talvez mais. Poderia ter 700 anos, …talvez como em tantos outros lugares poderia ter pouco mais do que 70 anos, e ainda assim, quem sabe, da mesma, forma seus mortos estivessem órfãos. O abandono e descaso pelos mortos parece estar por todos os lados.

Não se trata apenas das técnicas e leis para exumá-los, escavá-los, engavetá-los em Museus, memoriais, ou criptas e mausoléus. Trata-se de voltar a perguntar: como lidamos com um lugar onde foram ritualmente sepultados seres humanos? Sim, pessoas que acreditavam, oravam, lutavam, amavam, sofriam, que se foram na certeza de ter seu descanso final respeitado, porque assim sempre deve ser. Trata-se de preservar O LUGAR, porque este, representativo, foi escolhido pelos que ali viveram para deixar seus filhos, avós, pais, heróis, mães, irmãos, irmãs…para todo o sempre.  

Visitar os cemitérios, lembrar e festejar (ou chorar) os mortos é ainda a marca cultural de alguns povos atuais. Mas o que afasta a maioria de nós da morte? Por que deixamos, cada vez mais, nossos mortos órfãos? Porque os deixamos no esquecimento que permite que a cidade os apague para todo o sempre?

A proteção de um sítio tão antigo como Camboinhas, representativo de um momento primordial da ocupação humana nesta parte do país, seria uma obrigação e um dever do Estado em qualquer lugar do mundo civilizado. Inadmissível sua destruição, apagamento, esquecimento, ou destituição de valor.

O salvamento de um lugar de mortos, um lugar onde o próprio povo que construiu o monumento ainda está ali sepultado, ….ali preservado, uma obrigação respeitosa!  Salvos do tempo por milhares de anos, ainda presentes, donos e testemunhas do incrível passado que viveram….deixá-los órfãos seria um erro inaceitável, além de uma decisão ética e cientificamente equivocada.

Camboinhas é um cemitério. Um cemitério onde ainda estão aqueles que desbravaram este litoral. Não deixemos órfãos mais estes mortos!

Um comentário

  1. Belo artigo sobre Camboinhas, até os cemitérios históricos estão sobe ameaça do crescimento desordenado das cidades.

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