Não é de hoje que sabemos que condições climáticas influenciam no povoamento e repovoamento de territórios e em migrações de populações ao longo da história humana. Só, que de maneira geral, o senso comum tende a considerar que longos períodos de seca estimulavam a saída de grupos de um local, devido possivelmente à escassez de recursos para subsistência, enquanto longos períodos mais úmidos favoreciam o estabelecimento de grupos numa região, os quais são relacionados a um aumento na disponibilidade de recursos.
Levando essa noção para o registro arqueológico, esperava-se que tal situação fosse refletida nele de uma forma que haveria uma menor quantidade (ou até mesmo ausência) de vestígios arqueológicos num cenário de seca prolongada e maior quantidade em condições mais úmidas, entendidas como mais amenas. E, de fato, há correspondências a esse padrão, mas há variações e inconsistências; isto é, um número razoável de sítios arqueológicos em regiões que apresentam um longo padrão de seca durante uma época, assim como o contrário. Isso levou pesquisadores a desenvolverem trabalhos paleoambientais e arqueológicos em busca de entender esse cenário, sendo um deles o recém-publicado na revista PLOS One, de autoria de Astolfo Araújo e colaboradores.
Nele, os pesquisadores tentam compreender melhor a configuração e extensão do chamado Hiato do Arcaico, caracterizado como uma queda considerável da frequência de sítios arqueológicos durante o Holoceno Médio (c. 8.000 a 4.200 anos atrás) no território brasileiro. E têm também como hipótese que mudanças climáticas rápidas têm maior impacto na dinâmica populacional do que padrões climáticos de longa duração, o que poderia explicar o cenário descrito no parágrafo anterior.
Mas o que são mudanças climáticas rápidas?
De acordo com Enrico Di Gregório, um dos autores do artigo, “[elas] são, como o nome sugere, mudanças abruptas em um sistema climático, quando esse sistema passa para um novo estado após chegar em um limite. Elas podem ser causadas tanto por forças externas, como a queda de um meteorito, quanto por mudanças do próprio sistema que chegam em um limite e dão um salto, gerando essas alterações abruptas. Por exemplo: o derretimento de uma geleira causado pelo aquecimento global.” Di Gregório ainda chama atenção para o fato de que “as mudanças climáticas rápidas ocorrem dentro do ciclo de uma vida humana ou até menos”.
Quais foram os resultados encontrados?
Para averiguar sua hipótese, os autores combinaram as datações de mais de 4.000 sítios arqueológicos relativas às cinco regiões do país com diversas fontes de dados paleoclimáticos disponíveis de todo o território nacional.
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Analisando esses dados, os autores perceberam que há uma queda na frequência de sítios arqueológicos em locais e tempos associados a determinados eventos de mudança climática rápida, como por exemplo o rápido resfriamento no Atlântico Norte causado derretimento de geleiras ocorrido cerca de 8.200 anos atrás no Atlântico Norte e que evidências paleoambientais de sua ocorrência são encontradas globalmente. Há um declínio da quantidade de sítios datados para esta época em quase todo o país, exceto para o oeste da região Nordeste, onde há um aumento de sítios arqueológicos – o que está provavelmente relacionado às evidências de que essa região tinha um clima mais úmido naquele período do Holoceno Médio, indo numa direção oposta ao padrão climático do restante do país.
Outra observação é que há casos em que certos eventos pouco afetaram a frequência de sítios, indicando um baixo impacto em algumas regiões. Um deles é outro evento de resfriamento por derretimento de geleiras que ocorreu cerca de 9.200 anos atrás e deixou sinais no registro arqueológico na Europa e na região do Levante, no Mediterrâneo. Este evento é bem representado em sítios da região do Brasil Central onde há uma diminuição de sítios nesta época, mas ausente na região Amazônica, Nordeste e Sul do país.
Os resultados obtidos corroboram a hipótese dos autores de que as mudanças climáticas rápidas são uma melhor alternativa para explicar vários casos de diminuição de frequência de sítios arqueológicos do que a noção comum relacionada à períodos longos de seca sendo associados a um distúrbio cultural e períodos longos de umidade associados a condições de melhora. De acordo com os autores, há ao menos três razões para isso:
- É improvável que o clima se manteve seco na América do Sul Tropical por milhares de anos;
- Pessoas se adaptariam ao novo ambiente de clima seco caso ele se persistisse por diversas gerações humanas e as áreas secas seriam reocupadas;
- As mudanças climáticas rápidas podem explicar diversas inconsistências entre fontes paleoclimáticas, permitindo a contemporaneidade de sinais de seca e umidade numa região.
Qual a relevância dessa pesquisa para a arqueologia e nossa sociedade?
Di Gregório nos conta que “este artigo é inovador ao fazer um levantamento muito completo sobre as ocupações de sítios arqueológicos no Brasil e conseguir avaliar como essas ocupações se comportaram em relação às mudanças climáticas observadas através de dados ambientais. Assim, vimos que o Hiato do Arcaico não somente é verdadeiro, como ocorreu em outras regiões além do Brasil Central, como o Pantanal. Vimos, contudo, que em alguns locais os ambientes foram reocupados, e atribuímos isso à capacidade humana de se adaptar a mudanças graduais no ecossistema. Mudanças rápidas, por outro lado, forçam as migrações de maneira mais ostensiva”
Além desses pontos, essa pesquisa traz outros desdobramentos, sendo um deles o de que dentro do cenário atual de mudança climática intensa pela qual nossa sociedade tem passado, uma melhor compreensão do impacto de mudanças climáticas rápidas em grupos humanos no passado profundo pode auxiliar na criação de modelos de cenários climáticos futuros, o que pode contribuir para desenvolvimento de melhores estratégias para lidar com tais mudanças. Outro é que dados arqueológicos sejam utilizados como fontes em estudos paleoclimáticos e paleoambientais, dada a sensibilidade de grupos humanos a variações climáticas.
Por fim, “o artigo prova, mais uma vez, que a arqueologia não é uma ciência restrita ao entendimento do passado. Ela é uma fonte de conhecimento sobre o comportamento humano”, diz Di Gregório. “Além disso, o estudo mostra a seriedade com que devemos encarar as mudanças climáticas, visto os efeitos que elas podem causar em nossa sociedade. Apesar dos seres humanos terem plena capacidade de se adaptar e de resolver os problemas sérios colocados para as próximas décadas, isso demanda um trabalho robusto e uma transformação do modo como encaramos certas coisas atualmente”, complementa.
Para saber mais:
Araujo AGM, Correa LC, Perez GC, Di Gregorio ED, Okumura M. 2025. Human-environment interaction during the Holocene in Eastern South America: Rapid climate changes and population dynamics. PLOS ONE 20(2): e0315747. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0315747