Ossos e chifres de veados eram usados na fabricação de artefatos pelos primeiros humanos no Brasil

Por JuCa

Em um artigo recém publicado no periódico científico internacional Latin American Antiquity, as arqueólogas Mestra Gabriela Mingatos e Dra. Mercedes Okumura, pesquisadoras do Laboratórios de Estudos Evolutivos Humanos (Instituto de Biociências da USP) perceberam que veados de distintas espécies eram a principal fonte de matéria prima na confecção de ferramentas ósseas. Gabriela também é, atualmente, aluna de doutorado em arqueologia pelo Museu Nacional (UFRJ) e membro da equipe do site Arqueologia e Pré-História.

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Exemplos de artefatos ósseos, como espátulas, pontas de flecha e lascadores identificados na pesquisa.

O estudo foi conduzido em três sítios arqueológicos ocupados pro grupos caçadores-coletores (paleoíndios) datados entre 13 mil e 8 mil anos atrás: o sítio Lapa do Santo, em Minas Gerais, associado à cultura arqueológica Lagoassantense; o sítio Tunas, no Paraná, associado à cultura arqueológica Tunas; e o sítio Garivaldino, no Rio Grande do Sul, associado à cultura Garivaldinense.

Diferenças Culturais

Dentre os artefatos identificados nesses sítios foram identificadas pontas de flecha e furadores feitos em osso e chifre, lascadores (pressores e ponteiros) feitos em chifre e utilizados na produção de ferramentas de pedra lascada; e espátulas feitas em osso, cuja utilização ainda não é muito clara. As autoras chamam atenção ao fato de que existem diferenças nos tipos de artefatos que aparecem em cada sítio, além das diferenças no mesmo tipo de artefato em regiões diferentes. Por exemplo, os pressores só foram encontrados em MG e no RS, enquanto que as espátulas só aparecem em MG e no PR. Por outro lado, as espátulas de MG e PR são morfologicamente distintas. Essas diferenças apontam para a hipótese de que essas regiões eram habitadas por grupos culturais distintos da caçadores.

Para Mingatos, os artefatos ósseos são excelente marcadores culturais. “Cada grupo tinha a sua “caixa de ferramentas” com itens que eram utilizados ao longo da vida e para os mais diversos fins“, diz Mingatos. “Esses instrumentos foram feitos de formas especificas, com ossos específicos e para usos específicos. Essas especificidades ficam registradas nos artefatos e podem nos informar sobre grupos humanos distintos, desde preferencia de determinados animais para caça, como ferramentas utilizadas para a realização da caça”.

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Outra diferença está relacionada à escolha das espécies, mas essas diferenças estariam relacionadas à maior ou menor presença ou ausência delas nas diferentes diferentes regiões estudadas. A preferência no uso dos veados, no entanto, sobre outros animais não está clara. “Não temos uma resposta definitiva, pois não temos acesso a aspectos simbólicos que certamente influenciaram a preferencia por esses animais, mas sabemos que em alguns lugares esses animais eram abundantes e seus ossos e chifres foram reaproveitados para a produção de materiais para caça“, diz Mingatos.

Os estudos sobre artefatos ósseos

As arqueólogas ainda apontam para a necessidade de mais estudos sobre artefatos feitos em ossos e chifres nos sítios mais antigos da América do Sul, em especial estudos com experimentos que busquem entender a tecnologia de produção destes artefatos. “Existem estudos, mas de artefatos relacionados a contextos funerários. Estudos como esse eram feitos frequentemente na França nos anos 60/70, e isso chegou a ter um reflexo aqui no Brasil, mas aos poucos foi sumindo. Trabalhos existem, mas do ponto de vista tecnológico tal qual pedra lascada, não“, diz Mingatos.

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A zooarqueóloga Mestra Gabriela Mingatos realizando a análise da indústria óssea do sítio Garivaldino.

Para Letícia Correa, pesquisadora que atua na nas primeiras ocupações humanas do Estado de São Paulo, e que não esteve envolvida no estudo, a pesquisa de Mingatos & Okumura é importante  pois dá atenção ao estudo de um tipo de material que pouco se discute na literatura, uma vez que trabalhos zooarqueológicos costumam se focar apenas na dieta dos grupos humanos. “Talvez essa visão enviesada seja o resultado de abordagem teóricas, como a do forrageamento ótimo, que busca entender quais são os itens que compõem a dieta de grupos pré-históricos e, partindo destes resultados, pesquisadores buscam discutir os modos de vida, escolhas econômicas, comportamento cultural, etc.“, diz Correa, que atualmente é pesquisadora do Laboratório de Estudos Interdisciplinares em Evolução, Cultura e Meio Ambiente, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, onde realiza seu doutorado. “As autoras mostram com esse artigo que a pesquisa sobre artefatos ósseos e com galhadas de cervídeos, devem transpor a relação com os contextos funerários, ou seja, devem ser revistos e considerados enquanto itens utilizados para desempenhar atividades, as quais ainda não se pode afirmar com clareza, mas as análises de Migatos & Okumura já mostram resultados preliminares e cita algumas atividades como o uso de chifres para o lascamento de artefatos de pedra, reforçando a hipótese do uso desses instrumentos para retirada de lascas sobre pressão, técnica muito utilizada para formatação ou retoque de pontas, por exemplo.”

Também é notável na bibliografia arqueológica que os estudos de grupos caçadores são muito focados sobre artefatos de pedra lascada, enquanto pouca atenção é dada sobre os artefatos feitos em osso.

Ossos não se preservam da mesma forma que as rochas, os ossos estão mais sujeitos a sofrerem com intemperismo e a acidez do solo, portanto, encontrar artefatos ósseos em sítios arqueológicos pode não ser muito comum”, diz Mingatos.

Exatamente o inverso acontece com o material lítico. Este é o material que mais se encontra durante as escavações, se tratando de sítios com ocupações muito antigas. Os artefatos em pedras são  quase imunes ao intemperismo e por isso tendem a ser ponto de partida para os estudos“, diz Correa. “Somado a isso, a confecção de um único artefato em pedra gera grande quantidade de lascas, então, mesmo que não tenhamos artefatos finalizados (pontas bifaciais ou plano-convexos) contamos com os resíduos do lascamentos. Isso não ocorre com artefatos feitos pelo polimento em ossos ou galhadas de cervídeos .

Correa também aponta que demais pesquisadores também deveriam dar mais atenção aos vestígios que tem baixo grau de preservação: “Deveriam receber atenção redobrada, pois se configuram como exceções, dentro das coleções. As autoras do artigo apontam para uma questão importantíssima que ao tentar definir culturas temos que considerar todo o material arqueológico. “.

Para ler o artigo completo:

Mingatos, G., & Okumura, M. (2020). Cervídeos como fonte de matéria-prima para produção de artefatos: Estudos de caso em três sítios arqueológicos associados a grupos caçadores-coletores do sudeste e sul do Brasil. Latin American Antiquity, 1-16. doi:10.1017/laq.2020.4

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