O que é Arqueologia Forense? Como é a Arqueologia Forense no Brasil?
Por Daniela Ortega
Atualizado em 13/04/2021
A expressão “forense”, para muitos de nós, pode remeter na memória à investigadores em cenas de crimes em florestas à noite com lanternas e fita amarela, envolvendo uma “escavação”. Essa é a imagem midiática de algumas séries e filmes que envolvem investigações forense, como “CSI”, “Bones”, “O Colecionador de Ossos”, “Hannibal”, dentre outros, que têm como profissionais policiais e antropólogos. Além disso, também existe a Arqueologia Forense.
Para conversarmos sobre o tema, entrevistamos a historiadora e arqueóloga forense Ana Paula Tauhyl, mestra em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP) e especialista em Antropologia Forense e Direitos Humanos pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ana é arqueóloga do IPHAN (Superintendência de São Paulo) e já atuou em trabalhos de Arqueologia Forense no Brasil e teve contato com outros projetos da área no exterior (Espanha e Peru).
Um importante projeto em que Ana participou é o Grupo de Trabalho Perus (GTP) criado em cooperação entre a Unifesp, a Prefeitura de São Paulo e o Ministério dos Direitos Humanos. Esse grupo realiza a análise de restos mortais provenientes do Cemitério Dom Bosco na região de Perus em São Paulo, com o objetivo de identificar mortos e desaparecidos políticos do período da ditadura militar, assim reconhecidos pela Lei 9.140/95 (Fonte: Unifesp).
Ana Tauhyl explica que “Arqueologia Forense é a utilização de técnicas e métodos da Arqueologia em contextos forenses“.
Chamamos de contexto um sítio arqueológico, qualquer lugar que contenha vestígios de atividade humana, ou mesmo o lugar em que um vestígio isolado esteja inserido – em qual contexto isso foi encontrado? Ou seja, aonde é que estava isso? E até mesmo como que estava nesse contexto, enterrado ou sob o Sol, por exemplo .
Conforme Ana Tauhyl, um contexto é forense quando diz respeito à questões legais e de justiça. “É a arqueologia com o objetivo de auxiliar em processos legais, no desvendar de crimes e violações de direitos humanos, por exemplo“, complementa Tauhyl, “A palavra forense vem do fórum romano, local onde, entre outras coisas, aconteciam os processos criminais“.
No Brasil há o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) vinculado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que realiza pesquisa e oferece formação em direitos humanos, possuindo o curso de especialização em Antropologia Forense e Direitos Humanos.
A seguir, Tauhyl responde às nossas perguntas.
O que difere a Arqueologia Forense da arqueologia de tempos mais antigos?
O rigor metodológico da Arqueologia Forense é o mesmo de qualquer outra arqueologia, pois se está lidando com um contexto único. A partir do momento em que uma arqueóloga(o) escava um sítio arqueológico, ela(e), de certa forma, destrói esse contexto. Assim, tudo deve ser exaustivamente documentado. No mundo forense, essa boa arqueologia, essa arqueologia bem feita, tem, além de tudo, implicações legais. O vestígio coletado em campo pode ser uma prova no tribunal. Aquela estratigrafia milimetricamente registrada pode fazer a diferença entre condenar um ditador responsável por genocídio ou deixá-lo impune.
Qualquer arqueóloga(o) pode trabalhar nessa área ou é necessário algum tipo de especialização?
Para trabalhar na área é necessário, sim, especialização. Normalmente, a arqueologia já costuma ter um bom diálogo com outras áreas. Na arqueologia forense, isso é ainda mais forte, portanto, conhecer um pouco de direito, de medicina legal, de antropologia física e de outras áreas da perícia forense é fundamental. No Brasil, posso citar o curso de especialização em Antropologia Forense e Direitos Humanos, ministrado pela UNIFESP, que é uma opção para que o arqueólogo tome contato com esse mundo forense.
Quais outros profissionais podem fazer parte de uma equipe de pesquisa forense?
Como já havia mencionado, a área forense é multidisciplinar. Historiadores podem trabalhar para entender o contexto de um crime por meio da documentação histórica, biólogos e antropólogos especialistas em ossos humanos podem analisar esqueletos e estabelecer um perfil biológico, médicos podem usar seu conhecimento para pensar em causas de morte a partir dos ossos em conjunto com outros profissionais, dentistas podem estudar arcadas dentárias para estabelecer identificação, geneticistas podem coletar material genético de ossos e de familiares de desaparecidos, arquivistas podem auxiliar na organização da documentação gigantesca que um projeto forense pode produzir, educadores e jornalistas podem estabelecer comunicação com o público; enfim, estes são apenas alguns exemplos da multidisciplinaridade de um projeto do tipo.
Qual é o papel do IPHAN e da polícia no meio dos projetos de Arqueologia Forense?
O IPHAN é um órgão que tem, entre outras atribuições, a de proteger, fiscalizar e gerir o patrimônio arqueológico brasileiro. No que tange à Arqueologia Forense, caso seja descoberto um sítio arqueológico ligado a este contexto, cabe ao IPHAN também protegê-lo. As linhas são bastante tênues, pois um contexto de Arqueologia Forense pode ser objeto também de um inquérito policial, sendo alvo de perícia criminal. Hoje, no Brasil, a perícia oficial não conta com arqueólogos, o que é uma pena, pois as técnicas e métodos arqueológicos podem contribuir e muito no registro e investigação de cenas de crime. Portanto, normalmente, no Brasil, a Arqueologia Forense tem se engajado em casos não tão recentes, como a Guerrilha do Araguaia, a vala clandestina de Perus e outros casos de desaparecimento forçado da época da ditadura militar. Estes contextos podem ser judicializados, ou seja, podem eventualmente virar processos criminais. Em outros países do mundo, em especial na América Latina a Arqueologia Forense está bastante presente em casos de violações de direitos humanos, como genocídios e desaparecimentos forçados praticados por ditaduras ou grupos criminosos, por exemplo.
Na sua opinião, qual é a importância da Arqueologia Forense?
O papel da Arqueologia Forense é fundamental nesses contextos onde se tem crimes que envolvem violações de direitos humanos. São casos muitas vezes complicados e que demandam um olhar bastante técnico e científico. Além disso, uma a(o) arqueóloga(o) possuir uma formação abrangente em humanidades pode ser um diferencial no momento de entender contextos históricos e entrar em contato com pessoas que passaram por essas situações de violência. Falo aqui principalmente da Arqueologia e da Antropologia Forense Latino Americanas, que buscam esse olhar para o todo, para o sítio arqueológico, mas também para os familiares de desaparecidos; para os esqueletos encontrados, mas também para as histórias de vida das vítimas.
Como já mencionado, Tauhyl participou do Grupo de Trabalho Perus (GTP), projeto cujo objetivo é identificar mortos e desaparecidos políticos do período da ditadura militar no Brasil.
Qual era o seu papel atuando nessa investigação?
Atuei no Grupo de Trabalho Perus (GTP), de meados de 2014 até o início de 2019. Lá fiz parte da equipe antemortem no início. Antemortem vem de antes da morte, ou seja, investigar o que houve antes da morte de um individuo.
Essa equipe tinha o objetivo, em linhas gerais, de atuar em três frentes:
a) pesquisar o contexto histórico em que se davam os desaparecimentos na ditadura militar, como eles ocorriam e quem eram as pessoas desaparecidas pela ditadura, quem poderia ter ido parar na vala clandestina do Cemitério de Perus e como se deu o caminho desde a morte do corpo até o seu enterramento na vala, por meio da documentação disponível;
b) entender todas as ações realizadas anteriormente ao GTP, desde a abertura da vala em 1990 até 2013, passando pelas pesquisas realizadas pela UNICAMP nos anos 90 e pelos trabalhos feitos pelo IML/SP nos anos 2000, o que incluía também as ações empreendidas no campo da genética; e
c) estipular uma lista de desaparecidos a serem buscados e estabelecer contato com seus familiares, de modo a, por meio de entrevistas, levantar dados biológicos que pudessem auxiliar na identificação, mas também traçar um perfil dos desaparecidos, no que concerne às suas histórias de vida e às ações que antecederam sua morte e/ou desaparecimento, com o intuito de ir contra essa política de desaparecimento que o Estado vinha causando.
Também atuei por cerca de um ano na curadoria dos remanescentes ósseos, coordenando a etapa de abertura das caixas onde se encontravam estes remanescentes e a etapa de limpeza dos mesmos. Por fim, já no término da minha participação, auxiliei no cruzamento das características das pessoas que estávamos buscando com os dados obtidos a partir dos remanescentes ósseos, com o objetivo de selecionar casos suspeitos para exame de DNA.
Havia outros arqueólogos na sua equipe? Todos faziam o mesmo trabalho?
Havia outros arqueólogos na equipe. Tanto atuando na equipe antemortem, nas tarefas que já elenquei, como na equipe postmortem (investigação das ações ocorridas após a morte do indivíduo), na análise dos remanescentes ósseos. Cerca de dez arqueólogos trabalharam no GTP durante os cinco anos em que lá estive.
Para ver a lista da equipe do GTP: Unifesp: Grupo de Trabalho Perus
Qual é a importância da pesquisa forense que você participou no Brasil?
Uma pesquisa como o GTP é importante em vários aspectos. Primeiro, ela traz à luz uma violação de direitos humanos enorme, que se deu tanto no desaparecimento de militantes contra a ditadura, como no desaparecimento de pessoas comuns, pois se trata de uma vala clandestina com mais de mil pessoas.
Se buscávamos 41 desaparecidos pela ditadura militar na vala, quem são as outras pessoas que lá estavam? Eram pessoas enterradas como desconhecidas, pessoas tidas como indigentes e pessoas com nomes, mas que tiveram como destino uma vala não registrada em documentos oficiais e que continha sacos com ossos sem identificação. Isso quer dizer que, se a família de uma pessoa que foi enterrada na época de formação da vala (1974 e 1975) quiser ir ao cemitério fazer uma homenagem ao seu ente querido, colocar uma flor, acender uma vela, é bem possível que ela não saiba aonde se dirigir. A existência da vala esconde o destino final de mais de mil pessoas.
Aqui cabe um esclarecimento. A vala clandestina de Perus não é uma vala comum daquelas que estamos acostumados a ver nas grandes violações de direitos humanos, uma vala em que são colocadas de qualquer jeito pessoas recém assassinadas, ou pessoas mortas por uma epidemia, em que o enterramento rápido era necessário. Não. A vala clandestina de Perus é diferente. Quando uma pessoa morre e é enterrada, após três anos, normalmente, aqui em São Paulo, ela é exumada. Isso é um procedimento padrão. Ao ser exumada, ou seja, desenterrada, os seus ossos são colocados em um saco plástico do Serviço Funerário e voltam para a sepultura, ou enterrados embaixo de onde estavam, ou enterrados no canto da cova, para que haja espaço para outros sepultamentos. Tudo isso é devidamente registrado no livro do cemitério: a pessoa faleceu no dia X, está sepultada na cova Y, foi exumada no dia W e foi reinumada (reenterrada) no dia Z, na mesma sepultura onde estava. Em 1974 e 1975, mais de mil pessoas passaram por esse processo, mas estão ausentes no registro a data e o local da reinumação.
Entre essas pessoas, estavam militantes assassinados pela ditadura militar. Portanto, as famílias e o antigo administrador do cemitério, que não trabalhava lá na época em que a vala foi criada, passaram a desconfiar da existência dela. A vala só foi aberta em 1990 e teve seus corpos sistematicamente higienizados, analisados e documentados apenas em 2014, 24 anos depois!
Então, mostrar para a sociedade a violência contra os militantes políticos e o descaso com as outras pessoas é algo bastante importante. Realizar a limpeza de todos da vala, fazer a análise e deixar tudo documentado é uma forma de devolver a dignidade a pessoas tão desprezadas após a morte.
Mas talvez seja menos importante que a resposta que pode ser dada aos familiares dos mortos e desaparecidos. São pessoas que aguardam há muitos anos alguma ação do Estado brasileiro e eu acredito que este projeto pode dar ao menos a certeza de que uma busca séria estava em curso.
Obtivemos duas identificações. A identificação de Dimas Casemiro, que fora documentadamente assassinado pela ditadura, pôde devolver seu corpo ao seu filho e a identificação de Aluizio Palhano, que antes era desaparecido, sem registro algum de sua morte, comprovou que a ditadura militar usou a vala para sumir com seus desafetos.
Além disso, o GTP tem resultado na produção de muitos dados sobre as pessoas que se encontravam na vala clandestina. Espero que, no futuro, outras pessoas que procuram seus entes queridos que estejam desaparecidos, por motivos diversos, possam ter ali uma possibilidade de encontrá-los. Por fim, vejo o GTP como um marco nas pesquisas da área no Brasil, que pode fortalecer a arqueologia, especialmente no seu ramo forense, e atrair mais profissionais para trabalhar nas suas trincheiras.
Encerramos a entrevista com esse grande exemplo de trabalho de Arqueologia Forense no Brasil. A equipe do Arqueologia e Pré-História reitera a importância do GTP contra o silenciamento das atrocidades cometidas durante o período da ditadura militar no Brasil. É preciso estarmos cientes da nossa história e lutarmos contra a repressão, o racismo, a perseguição de minorias, a desvalorização e sucateamento da ciência, e os genocídios de comunidades indígenas e outras minorias, que infelizmente ainda atuam e ameaçam a vida.
Para ouvir a uma entrevista com a Ana Tauhyl, do Podcast 1049, do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) acesse o link:
Para ler a uma entrevista com a Ana Tauhyl e Márcia Hattori, acesse:
Para ler a um artigo da Ana Tauhyl e demais autores, acesse:
Para ler sobre Arqueologia Forense no Brasil acesse os links (download):
- Capítulo de livro. Editora Unifesp. 2019. PLENS, Cláudia R & SOUZA, Camila D. Arqueologia Forense: um balanço crítico, suas abordagens e contribuições.
- Comunicação apresentada no Seminário Internacional Sobre Violência de Estado: Direitos Humanos, Justiça de Transição e Antropologia Forense. CAAF/Unifesp. 2017. PLENS, Cláudia. Arqueologia Forense: do campo ao laboratório.
- Artigo. Clio Arqueológica 2015. SILVA, Sergio F. S. M. Arqueologia Forense no Brasil.
- Monografia. Universidade Federal de Rondônia. 2014. AGRA, Inara C. Antropologia e Arqueologia Forense.
- Artigo.Cienc. Cult. vol. 71. 2019. CUNHA, Eugenia. Devolvendo a identidade: a antropologia forense no Brasil. [cita a arqueologia].
Para ler a primeira edição da revista científica oficial da Associação Brasileira de Antropologia Forense (ABRAF) (que se propõe a incluir a Arqueologia Forense). A edição possui um artigo da arqueóloga forense Cláudia R. Plens, coordenadora do curso de especialização do CAAF.
Para ler reportagens sobre a pesquisa de Arqueologia Forense do GTP acesse os links:
- UNIFESP – Grupo de Trabalho Perus identifica restos mortais de militante político
- UOL – Quem caça osso é cientista: São 5 as pesquisadoras que identificam em São Paulo ossadas de desaparecidos políticos
- Prefeitura de São Paulo – Grupo de Trabalho de Perus identifica restos mortais de militante político
- Revista Galileu – Ciência forense ajuda a identificar mortos da ditadura militar brasileira
- BBC – Como é feito o trabalho de identificar restos mortais de desaparecidos na ditadura
- Aventuras na História – Conheça os trabalhos realizados na Vala de Perus
- Brasil de Fato – O que faz o Grupo de Trabalho Perus
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Para seguir a Ana Tauhyl nas redes sociais: Instagram: @anatauhyl Twitter: @ATauhyl
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Recentemente, a Arqueóloga Cris Amarante (Canal Arqueologia Alternativa) produziu um vídeo onde explica o que é a arqueologia forense e comenta a entrevista cedida pela arqueóloga Ana Tauhyl. Confira na íntegra: