Novas descobertas mostram trajetórias históricas de linhagens de mulheres Tupiniquim, Tupi, Guarani, Tupi Guarani e Paulistas em São Vicente, Jacarepaguá e no litoral sul de São Paulo, desconhecidas pela Arqueologia Brasileira até agora…

No final de junho deste ano de 2022 foi publicada mais uma edição dos Cadernos do Lepaarq (v. 19, n. 37), com o dossiê Conexões Atlânticas: Arqueologias do Colonialismo, trazendo 15 artigos com diversas novidades e avanços escritos por autories de 6 países.

As pessoas Tupiniquim, Guarani, Tupi Guarani e Paulistas estão em dois artigos sobre as suas práticas e relações. A materialidade produzida nas suas comunidades resultou do compartilhamento de saberes tradicionais entre as gerações, transmitidos de uma forma peculiar, sistemática, que resultou em conjuntos de vasilhas semelhantes em tempos e lugares diferentes. Os dois trabalhos abrem caminhos para a investigação interdisciplinar e a arqueologia da persistência das comunidades de práticas de mulheres produtoras de materialidades essenciais para a existência dos lugares.

No artigo “De São Vicente a Jacarepaguá: uma genealogia de mulheres Tupiniquim e a itinerância da Cerâmica Paulista”, Sílvia Peixoto, Marianne Sallum e Francisco Silva Noelli, reuniram informações e perspectivas de dois projetos desenvolvidos separadamente para produzir um resultado inédito na Arqueologia Brasileira: mulheres livres de uma família extensa de São Vicente, formada por pessoas Tupiniquim, portuguesas e aquelas que os registros escritos chamaram “mamelucas” (descendência europeia-indígena) que se mudaram a partir de 1594 para o Engenho do Camorim, em Jacarepaguá, e ali produziram vasilhas cerâmicas para a comunidade livre e escravizada, encontradas em 2016 nas escavações que fizeram parte da pesquisa de doutorado de Sílvia Peixoto. Essa mobilidade de mulheres poderá servir de referência para compreender outros contextos arqueológicos onde essa materialidade vem sendo encontrada, chamada de Cerâmica Paulista por Sallum e Noelli.

O fato relevante é que o contexto do Camorim oferece todos os elementos probatórios para demonstrar que a Cerâmica Paulista era uma produção Tupiniquim. O registro arqueológico, muito bem pesquisado, foi evidenciado em um contexto que dispõe de documentos históricos e genealógicos que conectam 6 gerações de mulheres ceramistas sem margem para dúvidas, mostrando a ação de uma linhagem iniciada ao redor de 1505 com a Tupiniquim Cecília Rodrigues, cuja maioria nasceu nas comunidades de São Vicente. Significa que as primeiras gerações estavam presentes no lugar onde a Cerâmica Paulista começou a ser produzida pelas Tupiniquim, que se apropriaram e transformaram a Cerâmica Comum Portuguesa. Provavelmente, as ancestrais de Esperança da Costa, uma das primeiras a ir para Jacarepaguá, participaram dessa transformação.

Linhagem das ancestrais de Esperança da Costa, em São Vicente.

Os resultados do artigo foram produzidos com um método interdisciplinar consistente, com documentos insofismáveis (arqueológicos e escritos) sobre a história de um lugar e da sua região, sobre a mobilidade de pessoas e a itinerância de práticas e conhecimentos. Também mostra pessoas livres com participação decisiva no trabalho necessário para a comunidade do engenho, revelando relações pouco estudadas na arqueologia e na historiografia, como indígenas e portugueses formavam as suas alianças e parentescos. Eram estas pessoas que lidavam cotidianamente com as pessoas escravizadas.

Cerâmica Paulista e exemplares (fragmentos) do Engenho do Camorim: a) panela de Apiaí (Vale do Ribeira/SP), coletada por Herta Scheuer, acervo do MAE-UFPR; b) vasilha do Engenho dos Erasmos (Santos/SP), acervo MAE-USP, reconstrução de Carolina Guedes.

Essa pesquisa também abre novas perspectivas para pensar as relações de gênero no sistema patriarcal colonial, ainda mais quando uma descendente indígena afronta um poderoso personagem do topo da cadeia alimentar dos “bandos” coloniais que dominavam o Rio de Janeiro no século XVII, como tão bem demonstrou o historiador João Fragoso.

Victória Correia de Sá, da sétima geração da linhagem da Tupiniquim Cecília Rodrigues, doou em testamento no ano de 1667 a sua grande plantation para os monges Beneditinos do Rio de Janeiro, pois não tinha descendência. Assim, ela contrariou o seu primo-irmão Salvador Correia de Sá e Benevides, então o homem mais poderoso do império português, líder das campanhas que expulsaram os holandeses de Angola e do Nordeste do Brasil.

No outro artigo, “Política da consideração e o significado das coisas: a persistência de comunidades de práticas agroflorestais em São Paulo”, Marianne Sallum e Francisco S. Noelli analisaram um outro período, a partir de meados do século XIX até o presente, no litoral sul de São Paulo. O texto aborda as comunidades agroflorestais onde as relações de colaboração são mediadas pela política de consideração, teoria de José A. Kelly e Marcos A. Matos, centrada na noção de “agir pensando no outro”, onde não ser considerado pelo Outro, ou não ser uma referência para o Outro, equivale a perder a própria humanidade.

O destaque é reconhecer pela primeira vez nos termos da arqueologia as pessoas descendentes de Tupiniquim, que hoje se consideram Tupi e, quando em relação de afinidade e parentesco com os Guarani, se autodefinem Tupi Guarani. Seus descendentes atuais, na comunidade Tabaçu Rekoypy em Peruíbe (São Paulo), reivindicam abertamente a identidade “misturada” entre Tupi e Guarani, manifestando o interesse em retomar a produção cerâmica que deixaram de fazer no passado. É um exemplo que exige a reavaliação do apagamento acadêmico dos povos indígenas na historiografia, arqueologia e antropologia em São Paulo.

Prática de resgate da cerâmica pela comunidade Tabaçu rekoypy, Peruíbe, 2021. Foto: Luã Apyká.

O artigo mostra um aspecto notável destas relações, destacando o papel social da materialidade produzida e compartilhada nas suas comunidades a partir da década de 1830. As fotografias que Ricardo Krone fez em 1903 nos rios Itariri e do Peixe, revelam que as mulheres Guarani produziam a Cerâmica Paulista, resultado da interação com as ancestrais das Tupi e Tupi Guarani do presente. No seu artigo “Die Guarany Indianer des aldeamento do Rio Itariri im Staate von São Paulo in Brasilien” (1906), Krone entrevistou pessoas com até 45 anos, “Halbblut” (“meio-sangue”) Guarani-Brasileiras, cuja descendência hoje se autodenomina Tupi Guarani, em Peruíbe, nas comunidades da TI Piaçaguera. Mas Krone inaugurou na antropologia o apagamento e o silenciamento dessas pessoas, sendo mais tarde seguido por Herbert Baldus.

A) Indígenas Guarany do Aldeamento do Rio Itariri. Cartão postal de 1903, Foto: Ricardo Krone; B) “Louça, utensílios, ornamento de pennas e canudos para dança Guaranys do Itariry”, Foto: R. Krone; C) Pote para água, coleção Herta Scheuer, acervo MAE-UFPR, foto: M. Sallum.

O registro fotográfico e métrico de centenas de vasilhas, feito por Sallum e Noelli no Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro, revelou vasilhas com as mesmas características das imagens de Krone. O conjunto possui vasilhas produzidas por 5 séculos, onde viveram as pessoas que articularam interesses e saberes, começando nas relações de parte das pessoas Tupiniquim e portuguesas, onde as mulheres tinham as suas comunidades de práticas cerâmicas. Com o tempo as suas descendentes continuaram a produzir, incorporando mulheres que vinham de fora, como as pessoas indígenas não-Tupiniquim e as africanas, afrobrasileiras, europeias e brasileiras de outras de regiões.

Enfim, os dois artigos revelam aspectos de um antigo e complexo processo de relações sociais com pessoas de diferentes lugares que se articularam das formas mais diversas para levar as suas vidas e projetos adiante. Cabe agora aos arqueólogos desenvolver novas metodologias que ajudem a compreender histórias semelhantes a essa, na longa duração, através de abordagens que procuram escapar das análises estritamente baseadas na materialidade.

Jairê, Iguape (São Paulo), ano de 1973. A) técnica do roletado; B) espaço de trabalho e panelas da Cerâmica Paulista; C) Ana Pereira e a confecção de uma panela. Fotos: Plácido de Campos Jr. (acervos MIS-SP).

Francisco Silva Noelli é doutorando e investigador do Centro de Arqueologia (UNIARQ), Universidade de Lisboa, apoio financeiro FCT: 2020.05745.BD. Pesquisador visitante na University of Massachusetts-Boston, New England Indigenous Laboratory. Pesquisador associado do projeto temático FAPESP 2019/18664–9, LEVOC (MAE-USP). E-mail: francisconoelli@edu.ulisboa.pt

Marianne Sallum é pós-doutoranda do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisas em Evolução, Cultura e Meio Ambiente (LEVOC) (MAE-USP), apoio financeiro FAPESP: 2019/17868–0, 2019/18664–9. Pesquisadora visitante na University of Massachusetts-Boston, New England Indigenous Laboratory, apoio financeiro BEPE-FAPESP: 2021/09619-0. Investigadora no Centro de Arqueologia (UNIARQ), Universidade de Lisboa. E-mail: marisallum@usp.br

Sílvia Alves Peixoto é doutora em arqueologia pelo Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro e diretora da Stratus – Arqueologia e Patrimônio Cultural. E-mail: silviapeixoto@gmail.com

Para saber mais:

Conexões Atlânticas: Arqueologias do Colonialismo. Cadernos do Lepaarq 19(37), 2022. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/lepaarq/issue/view/1124

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