Os fósseis brasileiros, riqueza da ciência nacional, estão sob risco – mas os paleontólogos resistem ao saqueio

Por: Enrico Di Gregorio

O Brasil é um dos países com a maior riqueza paleontológica do mundo. Diferentes bacias sedimentares (depressões na superfície terrestre que servem de depósitos de sedimentos) espalhadas pelo vasto território brasileiro registram diferentes momentos do tempo geológico. Em várias delas, fósseis de diversas espécies animais e vegetais abundam as diferentes camadas que registram os tempos remotos da história natural brasileira. Mas os estudos que buscam desvendar de forma mais profunda esse passado tem uma séria barreira: o histórico colonial brasileiro, marcado pelo saqueio de uma quantidade vasta desses fósseis, compromete uma visão integral da biodiversidade do passado, da evolução das diferentes espécies e até mesmo da geografia e do clima no Brasil em tempos passados. Até hoje, práticas imperialistas na ciência favorecem a recusa da devolução dos fósseis saqueados e o comércio ilegal ainda existente dos fósseis brasileiros. Por isso, muitos paleontólogos têm se levantado com cada vez mais contundência na defesa da repatriação dessa importante peça da história natural brasileira e do fim do saqueio ilegal de diferentes exemplares.

Comentando à reportagem sobre esse saqueio da riqueza científica nacional, o paleontólogo Hermínio de Araújo Júnior, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia (SBP) comenta que “são vários os fatores que levam à evasão ilegal de fósseis para fora dos seus territórios de origem. No caso do Brasil, o fato de termos vivido um longo processo de colonização e exploração resultou na remoção de vários exemplares fósseis brasileiros. Contudo, outra forma de evasão baseia-se na visão colonialista que alguns pesquisadores das antigas nações colonizadoras têm sobre os países que foram anteriormente colonizados, mesmo quando já possuem legislação sobre o seu patrimônio paleontológico, como é o caso do Brasil. Esta visão desrespeitosa impacta diretamente a soberania nacional de um país e diminui o potencial de uma nação compreender melhor a sua origem e cultura. Nesse sentido, a principal forma de remoção ilegal é a coleta ou compra não autorizada de fósseis brasileiros”.

Essa prática é generalizada. Uma pesquisa rápida por sites de comércio internacionais, como eBay, revela uma vasta gama de fósseis brasileiros vendidos a diferentes preços. Uma varredura desse tipo feita pela reportagem encontrou, por exemplo, o fóssil de um peixe Racholepis vendido a R$ 983 e de insetos vendidos a R$ 101. A generalização da prática é tanta que impede “estimar precisamente a quantidade de espécimes fósseis brasileiros que estão atualmente fora do país em situação irregular”, explica Hermínio.

Fósseis brasileiros vendidos são vendidos em plataformas como Ebay. Foto: Captura de tela/Ebay

Imperialismo científico

Esse comércio irregular dos fósseis brasileiros envolve diretamente cientistas e instituições de pesquisa de países imperialistas, perpetuadores da “visão colonialista” explicada por Hermínio. Nesses países, os fósseis extraídos de forma irregular são comprados por instituições científicas e mantidos completamente fora do alcance dos pesquisadores brasileiros e entidades como a SBP, que só descobrem da existência dos exemplares por meio de artigos escritos pelos pesquisadores estrangeiros ou por análises em coleções estrangeiras. Isso ocorreu com ao menos 90 fósseis exportados de forma irregular para países como a Alemanha, Japão, Inglaterra, Estados Unidos, Portugal, França, Espanha e Itália. Posteriormente publicados em pesquisas em periódicos científicos estrangeiros, os itens acabaram identificados por paleontólogos brasileiros. Segundo eles, o número pode ser muito maior.

Em outras palavras, não é um problema do passado, ou uma herança mal resolvida de práticas não mais executadas. Se trata, na verdade, de um problema atual, fomentado pelas práticas anacrônicas de cientistas alinhados ou coniventes com a política imperialista de seus países.

“No caso da ciência brasileira, é notória a visão colonialistas que alguns pesquisadores e colecionadores estrangeiros têm sobre o nosso patrimônio paleontológico. Em muitos casos, eles negam a existência de um conjunto de leis em nosso país a respeito do nosso patrimônio fossilífero. No caso da Paleontologia, esse parece ser o principal ponto negativo”, explica Hermínio. Ele acrescenta que “não necessariamente os fósseis que estão em museus no estrangeiro estão de forma irregular. Muitos podem estar lá fora de modo regular, pois foram adquiridos respeitando as leis vigentes em nosso país. Mas, no caso dos que estão irregular, é inviável mapearmos a quantidade de material que está no exterior e, portanto, é praticamente impossível calcularmos o tamanho do risco que esse patrimônio paleontológico está correndo”.

Fósseis com doenças, peles, músculos e órgãos

Não é à toa que o Brasil é um dos focos dessa prática. O Brasil tem, quiçá, o maior patrimônio paleontológico do mundo. Descobertas importantíssimas de diferentes ramos da paleontologia, desde espécies inéditas de animais como dinossauros ou insetos, até a presença de doenças existentes até hoje em animais do passado, o que permite o estudo da evolução dessas enfermidades, foram feitas aqui, em território nacional. Em 2020, pesquisadores descobriram, em um fóssil coletado na Bahia e abrigado no Museu de Ciências da Terra, no Rio de Janeiro, o registro de um câncer ósseo que afetou uma preguiça-gigante. O estudo foi importante para registrar que uma doença normalmente diagnosticada em humanos hoje em dia estava presente também em “tempos mais remotos, com as mesmas características anatômicas e radiológicas”, conforme explicou um dos autores do artigo, o Dr. Fernando Barbosa, à época da publicação.

Outras regiões do Brasil são conhecidas pela presença de fósseis com uma preservação excepcional, como a Bacia do Araripe, localizada no sul do Ceará e na divisa entre Pernambuco, Paraíba e Piauí. Hermínio comentou que, em alguns dos fósseis coletados nessa localidade, “é possível reconhecer tecidos moles junto a ossos de vertebrados, como é o caso de pele e músculos em pterossauros e dinossauros. Em outros casos, é possível reconhecer a presença surpreendente de órgãos reprodutores em insetos”.

Fósseis com preservação excepcional permitem vislumbre sobre detalhes de organismos do passado. Foto: Suzana Rosa/Revista Fapesp/Reprodução

À reportagem, o presidente da SBP também explica o porque a recuperação desses fósseis é tão importante para uma compreensão integral da história natural brasileira. “Os fósseis serão os elementos responsáveis por contar a história do passado do nosso território. Entender, por exemplo, as mudanças climáticas globais e a evolução paleogeográfica do nosso continente, só é possível a partir do conhecimento advindo do estudo dos fósseis”, explica ele, antes de concluir que “só conseguimos compreender como chegamos até aqui se estudarmos o nosso registro paleontológico. Portanto, quanto mais fósseis tivermos mais facilmente acessíveis e dentro do nosso país, mais fácil se tornar compreender a evolução do nosso território ao longo do tempo”.

Mas, quando os fósseis são retirados de seu local de origem de forma indevida, sem um registro sistemática do contexto natural em que estavam inseridos, esse entendimento fica comprometido. “Daí a necessidade de recuperação do patrimônio paleontológico que está irregularmente fora do país”, pontua Hermínio.

Patrimônio cultural e natural

Para barrar esse quadro de violação à legislação nacional por parte de países e instituições imperialistas, paleontólogos da SBP têm defendido a importância de ter uma visão ampla dos fósseis como patrimônio cultural e/ou natural do Brasil. Eles defendem que as legislações para a preservação de patrimônios cultural e natural não devem ser tomadas como contraditórias e separadas no caso dos fósseis, mas sim como complementares e em conjunto. Essa visão, defendida em um artigo publicado no último dia 29 de março na revista Nature por Hermínio e outros paleontólogos como Renato Pirani Ghilardi, Silane Aparecida, Victor Ribeiro, Fernando Henrique de Souza Barbosa, Sandro Scheffler e Ana Maria Ribeiro se destaca como um caminho para defender o patrimônio fossilífero nacional sem dar abertura à exploração das brechas legais.

“A caracterização dos fósseis como patrimônio cultural e/ou natural é importante porque o arcabouço legal e os órgãos governamentais fiscalizadores existentes no país para cada tipo de patrimônio são distintos. Por exemplo, no caso do patrimônio cultural, o registro paleontológico brasileiro deve ser fiscalizado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Sob a ótica do patrimônio natural, tal registro deve ser fiscalizado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e pela Agência Nacional de Mineração (ANM). É importante salientar que o registro paleontológico brasileiro é tanto patrimônio cultural quanto patrimônio natural e, portanto, o seu uso adequado deve ser regimentado e fiscalizado pelos três órgãos acima mencionados”, explica Hermínio.

Lutas e vitórias

E, graças à luta empenhada desses cientistas aliados a diferentes setores do povo brasileiro, a situação tem sido revertida. A evasão irregular desses fósseis tem caído na medida em que pesquisadores, servidores de instituições de preservação e uma parcela das massas populares em geral têm participado de forma mais ativa na defesa do patrimônio paleontológico brasileiro, uma parte preciosa da riqueza científica nacional.

Dentre as vitórias conquistadas até aqui, está a devolução de fósseis que foram exportados irregularmente para países da Europa de volta para instituições científicas nacionais, um processo chamado de repatriação. Esse foi o caso do “Ubirajara jubatus”, um fóssil de dinossauro extraído ilegalmente do Brasil na década de 1990. Depois de sair do Brasil, o espécime foi parar em um museu na Alemanha e foi descrito por paleontólogos estrangeiros em um artigo publicado em 2020. O fóssil tem um grau de preservação excepcional que registra até mesmo a presença de penas na espécie de dinossauro. “O artigo deu conhecimento a esse espécime bem como ao caráter irregular de sua estadia no exterior. Isso fez com que paleontólogos brasileiros se mobilizassem para que o espécime fosse repatriado e, felizmente, o processo para sua repatriação foi relativamente curto, tendo durado cerca de 3 anos. Em 2023 o fóssil retornou ao Ceará, região de onde foi retirada ilegalmente”, explicou Hermínio. Além da repatriação, o estudo feito em condições irregulares foi retirado do ar e a espécie descrita nas mesmas condições foi invalidada.

Fóssil de dinossauro foi repatriado da Alemanha ao Brasil após mobilização de paleontólogos. Na foto, paleoarte de “Ubirajara jubatus” (à esq.) e fóssil repatriado (à dir.). Foto: Reprodução

Há ainda outros casos. Em 2023, 998 fósseis de até 110 milhões de anos, extraídos ilegalmente da Bacia do Araripe e exportados para a França, foram repatriados. Em outro episódio, os paleontólogos brasileiros conquistaram a repatriação de um crânio de pterossauro que estava alocado na Bélgica.

É uma luta complicada, que atravessa diferentes esferas da ciência, da política e dos ramos jurídicos e necessita do apoio das mais diversas camadas das massas populares. Mas que, quando trava de forma consequente, é capaz de obter importantes vitórias que se revertem em um inquestionável desenvolvimento para a ciência nacional. Novos capítulos dessa batalha devem se reverter em mais conquistas em breve. “Mais recentemente, a comunidade paleontológica brasileira tem estado envolvida no processo de repatriação do holótipo do dinossauro Irritator challengeri, o qual encontra-se atualmente em uma coleção pública na Alemanha. Esperamos que, em breve, esse importante espécime também esteja de volta ao Brasil”, conclui Hermínio.

Reprodução de matéria publicada originalmente no jornal A Nova Democracia, em 04 de abril de 2024, por Enrico Di Gregorio.

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