O Contexto da Arqueologia Subaquática na Espanha e no Brasil

Texto de Miguel San Claudio, para o blog Espejo de Navegantes. Miguel é o gerente da empresa Archeonauta S. L., na Espanha.

Tradução feita pelo JuCa.

Espanha e a Arqueologia Subaquática

Quando em Maio de 2006, ao sul das costas portuguesas foi descoberto o naufrágio da fragata Nuestra Señora de las Mercedes – imediatamente apelidado de “La Merchi” na cena – culminaram-se anos de trabalho de cientistas, arqueólogos, historiadores e técnicos , muitos deles espanhois. A empresa estado-unidense Odyssey Marine Exploration, que financiou a operação, mostrou que com a vontade e os meios, é possível executar projetos complexos de natureza patrimonial sob o mar. Este trabalho teve uma forte contestação do âmbito científico e cultural, acusando a tal empresa de atuar como piratas ou saqueadores sem escrúpulos.

Após a descoberta da fragata espanhola iniciou-se duas estradas que culminadas juntas haviam sido típicas de qualquer país desenvolvido.

O Reino de Espanha se sentiu afetado em seus interesses com a recuperação do tesouro que a empresa dos EUA trouxe para a superfície. No exercício dos seus direitos, a Espanha pleiteou e obteve a restituição da carga de moedas de prata e alguns outros objetos.

O extraído naquela ocasião é apenas metade do declarado no manifesto de carga. Se somarmos o contrabando, e pertences pessoais dos passageiros, é possível que em Cartagena estejamos custodiando uma pequena parte do tesouro total.

Não vamos falar do resto dos objetos deixados no fundo do mar: talheres, canhões de bronze – peças de museu já no momento do naufrágio – e toda a informação cultural que tão orgulhosamente proclamamos é o nosso objetivo.

O primeiro caminho foi percorrida até o fim e culminado com êxito a partir do ponto de vista do governo espanhol… mas o mérito só foi colocar o dinheiro para contratar bons advogados e obter o direito à restituição do ponto de vista do sistema tribunal americano. Aí termina a virtude do nosso país.

Dizia Greg Stemm, co-fundador e CEO da Odyssey Marine Exploration, a questão da  La Merchi foi a melhor coisa que poderia acontecer para a Arqueologia Subaquática espanhola,já que considerava que seria um choque para a disciplina decolasse definitivamente no nosso país… mas Greg Stemm não conhece os espanhóis..

O segundo caminho é aquele que nunca transitou. Que seis anos após a recuperação de uma parte do tesouro, a Espanha não enviou uma expedição para verificar o status do sítio arqueológico, é algo que não seria permitido em qualquer outro lugar que não seja um país com uma política cultural como a nossa e um desenvolvimento de Arqueologia Subaquática como a que nós padecemos.

É verdade que não podemos extrair todo aquele tesouro dos nossos mares, mas deve ser uma prioridade do Estado conhecer seus recursos e jazidas nas quais eles querem fazer valer os seus direitos, no mínimo, para evitar uma ação descontrolada. Quem pode garantir que outras pessoas não tenham intervindo no campo? A quantidade de prata que continua afundada é certamente uma atração poderosa.

A Espanha é sem dúvida o país com o maior Patrimônio Cultural Subaquático do mundo, não só no que se refere às suas águas da responsabilidade, mas naqueles depósitos espanhóis espalhados por todo o mundo. Hoje, nosso país é um anão na pesquisa, estudo e rentabilidade do Patrimônio Cultural Subaquático.

Esta situação não é devido à falta de recursos ou de profissionais que trabalham nesta área. A razão, na minha opinião, está na má preparação dos encarregados de sua gestão que impedem que sejam aplicados recursos a este campo. Segregar completamente a Arqueologia Subaquática da Gestão do Patrimônio Cultural terrestre será um primeiro passo na direção certa.

Como exemplo do que aconteceu na Galiza, aparentemente, esta comunidade está substituindo os arqueólogos e restauradores subaquáticos por mergulhadores da Armada Espanhola, tal como publicado na imprensa recentemente. Uma vez que a administração optou, por falta de conselho, um caminho errado que só pode terminar em um fracasso do qual se arrependerão tanto essa Administração e os envolvidos na aventura. Este caminho já foi feito no passado, tanto no nosso país e como no exterior e nunca funcionou bem para ambas as partes. Acreditamos firmemente na necessidade de colaboração com a Marinha em tarefas de proteção do Patrimônio Cultural Subaquático, mas a substituição de um pessoal civil com formação por militares sem habilidades específicas neste domínio não é o caminho.

Há um axioma em Arqueologia Subaquática nascido no mesmo momento em que surgiu esta disciplina, e é que é mais fácil ensinar mergulho a um arqueólogo do que formar um mergulhador profissionalmente em arqueologia. Haverá sempre ajudantes e auxiliares, mas nunca há de se permitir um pessoal sem formação a intervir no patrimônio cultural subaquático.

Isso significa que, as técnicas e os desenvolvimentos nesta matéria que evoluem de ano a ano não ajuda os responsáveis ​​do Patrimônio Cultural Subaquático a entender o grande desenvolvimento que tem essa disciplina hoje em todo o mundo. A situação espanhola tornou-se incompatível não só com países do nosso nível de desenvolvimento, mas com aqueles que estão, teoricamente, localizado um ou dois degraus abaixo. Países como a Albânia, Vietnã, Cuba, México e muitos outros, mantêm projetos complexos internacionalmente relevantes, ao contrário de Espanha.

Nossos centros de pesquisa, tanto aquele estatal, quanto os três autônomos existentes, parecem incapazes de ver além das suas águas imediatas. Um Centro de Pesquisa em Arqueológica Subaquática em apenas duas ocasiões saiu das águas murcianas (a menor extensão de todas as CCAA) não merece o adjetivo de Nacional. Tendo só dois ou três arqueólogos, sem projetos de pesquisa conhecidos, dedicados praticamente ao estudo os objetos de suas lojas não ajuda. Sua ligação exclusiva com o Mediterrâneo, e com a cultura clássica em particular, não parece o apropriado em um país que tem contribuído muito – muitíssimo – com a história marítima global, justamente quando ele abriu os oceanos do mundo, além do mar restrito, permitindo que a humanidade superasse a visão clássica do mundo.

A falta de oportunidades em projetos de pesquisa acadêmica ou de qualquer outro tipo, levou os melhores arqueólogos subaquáticos espanhóis a buscar sua sobrevivência no estrangeiro ou em projetos vinculados em todos os casos com as obras públicas e minimização dos danos ao Patrimônio Cultural Submerso. Algumas das empresas que os enquadram têm chegado a acumular ao longo dos anos, muitas mais intervenções que todos os centros oficiais juntos. Profissionais envolvidos neste tipo de trabalho têm acumulado uma vasta experiência em trabalhos de arqueologia subaquática na infinidade de intervenções realizadas… e não é pisando mole que se faz arqueologia subaquática. Essa experiência, tal e como corresponde ao nosso país, não é aproveitada pelas administrações públicas, não existindo nenhum tipo de transferência de profissionais de espaço privado para o espaço público.

A Espanha tem obrigações História Marítima, o nosso foi o primeiro país da Europa a ser incentivado a desenvolver transporte marítimo, cabotagem para além do Mediterrâneo ou Africano. A travessia do Atlântico e Pacífico são conquistas espanholas, e para isso desenvolvemos novos navios que permitiram, graças a evoluções sucessivas da mesma idéia, à Europa dominar o mundo durante quatro séculos.

Parece que nós estamos esperando que sejam os anglo-saxões que estudem os nossos barcos e os mostrem ao mundo, e isso não é por falta de jazidas arqueológicas ou falta de profissionais. É apenas um sinal de preguiça e incompetência dos responsáveis ​​para pôr fim a esta situação.

Pode-se argumentar que a Espanha mantém uma estrutura de estado que impede a lidar com projetos de pesquisa comuns, no entanto, a realidade é a ausência de tais iniciativas. A Arqueologia Subaquática espanhola padece em praticamente qualquer tipo de pesquisa. Eu gostaria de verificar a reação das diferentes autonomias diante uma petição de intervenção arqueológica por parte de uma agência governamental… este contexto é inédito no nosso país.

A Gestão de Arqueologia Subaquática na Espanha é reativa, quando se produz um feito, e torna-se público, ele é executado, se toma seriedade e normalmente por iniciativa política, um protocolo de contenção de danos… Nunca se atua preventivamente e, certamente, não existem projetos de pesquisa de qualquer espécie. Podemos usar a crise como uma desculpa, mas este cenário é totalmente alheio a esta circunstância, nem nas épocas douradas houve o menor esforço para mudar a situação.

Acredito firmemente que, a fim de resolver o primeiro problema é expô-lo e, espero, – creio que com o tempo se conseguirá – que esta enumeração permitirá lançar as bases para que a Espanha ocupe o lugar que merece neste campo, tanto pela sua história como pelo Patrimônio Cultural Subaquático que custodia e de quem é responsabilidade.

Nossos gestores pensam que construindo um centro espetacular – de caro custo e manutenção -, e dando a grana para uma empresa norte-americana, já tem cumprido sua função. Em ambas as tarefas foram gastos, e gastam, milhões de euros que irão ao título de Arqueologia Subaquática. Mas ao longo dos anos, temos demonstrado nossa incapacidade de colocar um arqueólogo subaquático em um projeto sério e continuado ao longo do tempo, na Galiza nos dispomos de apunhalar o profissional… e não temos sido capazes de descer e verificar o restante da fragata espanhola Nossa Senhora da Misericórdia… quando todos nós sabemos que a primeira coisa a se fazer quando um crime é realizado é inspecionar a cena do crime. Ou o crime é, de fato, a falta de reação ante o mesmo?

FONTE: Espejo de Navegantes

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Comentários do Mestre Luis Felipe Freire Dantas Santos, arqueólogo de ambientes aquáticos no Brasil.

Sem título

Ao contrário da Espanha, que desde 2005 vem aderindo a Convenção da UNESCO para Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático – documento produzido no ano de 2001 que cria as diretrizes para o estudo e gestão do patrimônio localizado embaixo d’água ou em áreas de interface – o Brasil, além de não ratificar a convenção, um ano antes, aprovou uma lei – Lei Federal 10.166/00 – que estipula valores de mercado aos bens arqueológicos resgatados de embarcações naufragadas e sugerindo sua comercialização por empresas de caça ao tesouro nacionais e internacionais, a exemplo da Odyssey Marine Exploration. Posicionando-se de forma contrária a 50 anos de discussão em prol do patrimônio cultural subaquático.

Contudo, nos últimos anos muitas iniciativas vêm propiciando a alteração do panorama lamentável em que o patrimônio cultural subaquático brasileiro foi inserido. Atualmente, temos um projeto de lei – PL 7.566/06 – que desde 2006 tramita no Congresso Nacional que objetiva uma mudança no tratamento que o patrimônio cultural subaquático vem recebendo em nosso país. Também é visível uma maior cooperação entre a Marinha do Brasil e o IPHAN, em ambas as instituições a visão de gestão e preservação do patrimônio cultural subaquático vêm se conciliando com as perspectivas propugnadas pela UNESCO e da comunidade de arqueólogos.

Acredito que presenciamos um momento impar no Brasil, aonde instituições públicas vêm discutindo cada vez com mais intensidade sobre a situação desse patrimônio e buscando resolvê-la, a cada ano mais arqueólogos-mergulhadores são formados em cursos de graduação e pós-graduação, como também, novos e importantes projetos de pesquisas de sítios arqueológicos subaquáticos vêm surgindo, capitaneados por pesquisadores de diferentes instituições de pesquisa do país.  Sou esperançoso em dizer que em poucos anos transformações concretas se estabelecerão, mudando de fato a maneira incongruente que é tratado o patrimônio arqueológico brasileiro.

Um comentário

  1. Ótima sacada vc ter unido ao texto do pesquisador espanhol os comentários do pesquisador brasileiro. Espero que o quadro no Brasil realmente melhore

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