Texto escrito por Márcia Jamille.
O velho e bom pão nem de longe é uma invenção contemporânea, da mesma forma que beber aquela cervejinha para celebrar já é coisa muito antiga, e ponha “muito antiga” nisso.
Ao longo das décadas a tentativa do entendimento da vida cotidiana das pessoas virou uma das preocupações da Arqueologia egípcia e quando se fala em dia a dia umas das prioridades é descobrir o que afinal consumiam os antigos egípcios. Em termos de cultura material escrita devido aos mais de 2.000 anos que nos separam do Período Faraônico poucos foram os exemplos escritos de receitas propriamente ditas que sobreviveram ao desgaste do tempo, mas para responder e levantar mais questões sobre esse assunto é possível aplicar o estudo da pictografia presente em sepulcros, isto graças a grande preocupação que existia em deixar gravadas nas paredes de tumbas imagens de colheitas, brincadeiras, amor, brigas e claro a preparação de alimentos. Sepulcros como o de Ti (Antigo Reino; 5ª Dinastia) em Saqqara e Rekmire (Novo Império; 19ª Dinastia) em Tebas possuem exemplos bem explícitos:
As escavações dentro das sepulturas naturalmente também dão a sua contribuição, graças ao antigo costume dos banquetes funerários e o sepultamento de alimentos com o falecido. Esse último caso está ligado até certo ponto ao “ritual da abertura da boca”, ocasião em que o deus Anúbis, um sacerdote, parente ou um amigo do falecido abre magicamente a boca da múmia usando ferramentas rituais tais como o meskhetyu ou nu (um tipo de enxó), o peseshkaf (um instrumento em pedra — comumente de sílex — que lembra um anzol) e um wer-hekau (um instrumento em forma de cabeça de carneiro ou serpente), para que o morto possa voltar a respirar, falar e comer.
Entretanto, saindo do campo religioso, para nós arqueólogos a presença de alimentos em sepultamentos nos deu a vantagem de saber o que fazia parte da dieta egípcia: apesar dos constantes furtos em sepulturas muitos estoques antigos de mantimentos permaneceram intocados em alguns túmulos, a exemplo do local de sepultamento do arquiteto Ka (Novo Império; 18ª Dinastia) e do faraó Tutankhamon (Novo Império; 18ª Dinastia). Em ambos os casos foi possível observar que, ao menos entre as pessoas com posses, eram depositados em sua sepultura coisas como pães, azeite, variedade de carne, mel e vinho.
Já entre as camadas mais pobres da população? As camadas comuns (ou seja, de fora do âmbito da nobreza e da realeza) certamente tinha em sua dieta base o pão e a henequet (cerveja), uma bebida levemente alcoólica, mas energética. Entretanto, levando os óstracos encontrados em Deir el-Medina em consideração, podemos incluir também uma variedade de verduras e legumes (vagens, cebolas, lentilhas), leite e peixes (as carnes, especialmente a vermelha, provavelmente eram pouco consumidas, sendo mais de uso continuo da elite). Porém, ao contrário do que ocorria entre a elite, ato de sepultar alimentos não foi amplo. Em todo o Egito tanto é possível encontrar corpos ao lado de vasos de cerâmica que provavelmente continham comida, como corpos sem nenhum acompanhamento funerário neste quesito. Nesse caso a fome nesta vida e na próxima poderia transformar o individuo falecido em uma entidade errante maligna, algo talvez como um mwt (que seria um espirito andarilho) ou um 3ḫ (“Aj“, um espírito que sofreu uma mutação metafisica).
A questão da existência ou ausência de alimentos em determinados sepultamentos (leia aqui elite versus população comum versus população verdadeiramente miserável) vai muito além do quesito “ser pobre” ou “ser rico”, uma vez que a alimentação foi um dos muitos instrumentos de poder e domínio do estado. E isso não está presente somente nas demonstrações da faculdade divina do faraó ao se vangloriar de que fez o Nilo inundar mais uma vez e salvar o Egito da fome, mas também nos textos funerários, presentes comumente nos enterramentos mais abastados, em que, dentre os vários riscos, as fórmulas mágicas auxiliariam o morto a não “comer ao contrário”, ou seja, consumir seu próprio excremento e urina.
Para saber mais:
TALLET, Pierre. A culinária no Antigo Egito (Tradução de Francisco Manhães, Maria Júlia Braga, Joana Bergman). Barcelona: Folio, 2006.