Cartas de posicionamento ao sítio escola Scientia 2015

Na última semana surgiram alguma cartas de posicionamento sobre o sítio escola Scientia (também divulgado aqui no site). Você pode ler as cartas de manifestação abaixo:

1ª Carta:

Carta ao Sítio anti-­Escola em Belo Monte 2015

Os associados e as associadas da Sociedade de Arqueologia Brasileira receberam, no dia 15 de junho de 2015, uma circular divulgando o Sítio Escola a ser realizado em 2015. O objetivo não é diferente de qualquer outro sítio escola conhecido no Brasil ou exterior: contribuir com a formação de profissionais em arqueologia, através das experiências teóricas e práticas envolvidas no trabalho de campo. No entanto, o documento esclarecia, mais abaixo, que as atividades seriam desenvolvidas no contexto da construção da barragem da UHE Belo Monte.

O que se pode vislumbrar deste chamado é que, mais uma vez, as muitas Arqueologias ­ acadêmica, de contrato e pública ­ se encontram, porém, nem sempre de maneira coerente. É inegável que a explosão de cursos de graduação em Arqueologia que as universidades públicas vêem está associada com a demanda por mão­de­obra para o licenciamento ambiental. Há 10 anos, havia apenas três cursos de graduação no Brasil, havendo atualmente 12 cursos ­ a maioria localizada na região Norte e Nordeste do país, local onde também se encontram as maiores obras de infraestrutura promovidas pelo Projeto de Aceleração do Crescimento (PAC).

Desde sua obrigatoriedade pela resolução Conama nº 01 de 1986, a arqueologia ingressa no licenciamento ambiental, e isso tem contribuido para sua visibilidade e crescimento. Entre defensores e críticos dessa atividade, entendemos que ela é uma obrigação legal, e que compete à ética profissional a responsabilidade de um trabalho feito da melhor maneira possível ­ incluindo aqui a necessidade de um posicionamento frente a trabalhos em áreas com conflitos sociais latentes, nos quais a Arqueologia pode cumprir um papel de legitimar a implementação da obra em curso, corroborando com projetos que consideram uma série de problemas sociais e ambientais.

Foi pensando nisso que a Sociedade de Arqueologia Brasileira, em seu encontro Regional Norte em 27 de agosto de 2014 na cidade de Macapá, aprovou a Nota de Posicionamento em Solidariedade com os Povos da Bacia do Tapajós , na qual posiciona­-se em favor das populações atingidas, problematizando a 1 execução do Estudo de Impacto Ambiental na região, tendo em vista o desrespeito à vontade dos indígenas e ribeirinhos, bem como o uso da Força Nacional de Segurança para impôr a presença de pesquisadores.

Belo Monte, dentre todas as UHE’s previstas e erguidas nos rios da Amazônia, é o maior impacto social e ambiental desde a UHE de Itaipú. Contra às recomendações técnicas e científicas de todas as áreas de atuação que envolvem a construção de uma hidrelétrica, da engenharia à biologia, Belo Monte prossegue e já se mostra um desastre socio­ambiental. Um desastre não só ignorante dos estudos de impacto, mas também ignorante às demandas das populações locais, ignorante do direito dos ribeirinhos e indígenas à consulta prévia, livre e esclarecida, exigida pelo artigo 169 da OIT, da qual o Brasil é signiatário. Inúmeras já foram as manifestações acadêmicas e populares contrárias à sua construção. Belo Monte se constitui como uma imposição do Estado e dos interesses econômicos de grandes empreiteiras, sobre os modos de vida tradicionais, o meio ambiente, e a qualidade de vida da população em seu entorno.

Lembremo­-nos aqui de apenas três exemplos pontuais, porém significativos: ­

  • Em 2009 diversos especialistas de diferentes universidades do país (UFRJ, UFPA, UnB, USP, Museu Nacional, INPA, MPEG, Universidad de San Andrés, Unicamp, ITA, entre outras) lançaram o “Painel de Especialistas. Análise Crítica do Estudo de Impacto Ambiental do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte”, criticando o EIA­RIMA realizado pela Eletronorte, e demonstrando que os estudos subestimavam os impactos ambientais e sociais que seriam causados. ­
  • Entre 13 e 17 de junho de 2012 ribeirinhos das comunidades atingidas pelas obras da UHE, indígenas de diversas etnias da região em ADA, AID e regiões vizinhas ­ dentre Assurinis, Jurunas, Mundurukus, Araras, Araweté, entre outros ­ e cientistas e apoiadores, se reuniram em Altamira para o “Xingu +23. Ocupe, este rio é nosso”, um evento de união ocorrido em paralelo e em crítica à Rio +20, para mostrar que desde 1989 ­ ano de ocorrência do 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu ­ os povos da região são contra a implementação de uma UHE (na época, chamada UHE Kararaô). ­
  • Um dos muitos protestos realizados por indígenas e ribeirinhos, em 18 de março de 2014, unidos, fecharam a rodovia que dá acesso aos canteiros de obra da UHE em Vitória do Xingu. Desde este momento, já era latente impactos negativos, como despejos, inflação no preço dos imóveis e mercadoria, aumento da prostituição ­ inclusive infantil ­ e dos casos de alcoolismo, todos estes negligenciados pelos poderes público e privado. Mais recentemente veio à tona o total descumprimento das condicionantes na etapa de Implementação da UHE. A Norte Energia tem uma lista de processos, por parte do MPF, da Defensoria Pública de Altamira, de indigenistas, entre outros.

Eventos como estes não cessam de ocorrer na região. A Norte Energia e o governo brasileiro, mesmo assim, não cessam de ignorá­los. A Arqueologia, ao mesmo tempo, tenta realizar seus trabalhos de licenciamento apostando na neutralidade das pesquisas.

A promoção da arqueologia no licenciamento em Belo Monte como campo de aprendizado “em um contexto de arqueologia consultiva” soa uma contratdição. O ensino do trabalho em contexto de licenciamento é necessário enquanto parte da atuação profissional do(a) arqueólogo(a) no Brasil e no exterior. Enquanto trabalhadores e trabalhadoras em arqueologia no âmbito do licenciamento ambiental, enxergamos com receio e contrariedade o retrato da precarização do nosso ofício, sendo travestido de atividade de ensino, enquanto poderia estar gerando postos de trabalho regulares e estáveis. Além dos citados problemas sócio­ambientais, nos solidarizamos aos trabalhadores que, coagidos pelas parcas oportunidades de emprego, se sujeitam a fazer arqueologia nestas áreas de conflito, não de maneira alienada, mas porque lhes é a única opção.

Certamente, o ensino da arqueologia de contrato não deve coadunar com um projeto de imenso impacto socio­ambiental. Não se deve ensinar que projetos como Belo Monte, inviabilizados por todos os lados, é factível. Não se deve ensinar que devemos aceitar Belo Monte em nome de “um trabalho, pelo menos, bem feito”. Belo Monte está sendo e deve ser combatida até o seu fechamento, e mitigação de todos os danos já causados ao meio ambiente, aos povos da região, e ao patrimônio arqueológico. Não existe neutralidade quando se pesquisa em um contexto tal como Belo Monte.

Assim, assinamos abaixo contra o Sítio Escola em Belo Monte 2015.

Esta carta se direciona principalmente às alunas e aos alunos, profissionais e interessados em geral que intencionam participar das atividades do Sítio Escola em Belo Monte 2015. Ela é um chamado à reflexão, crítica, consciente, acerca da prática arqueológica e dos impactos diretos, indiretos, simbólicos e epistemológicos de realizar uma atividade de formação em pesquisa de licenciamento ambiental para liberar esta obra de imenso impacto socioambiental. Repensem. Não existe pesquisa neutra.

Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores em Arqueologia

Bruno S. Ranzani da Silva ­ MAE/USP
Camila Pereira Jácome ­ MAE/USP
Débora Leonel Soares ­ MAE/USP
Eduardo Kazuo Tamanaha ­ MAE/USP
Erêndira Oliveira ­ MAE/USP
Francisco Forte Stuchi ­ Biólogo/Arqueólogo
Guilherme Zdonek Mongeló ­ MAE/USP
Laura Furquim ­ MAE/USP
Maurício André da Silva ­ MAE/USP
Patrícia Marinho ­ MAE/USP
Vinicius Melquíades dos Santos ­ MAE/USP

2ª Carta:

Posicionamento sobre atividades de ensino de arqueologia propostas no âmbito da usina hidrelétrica de Belo Monte – Pará, Brasil

Na condição de docentes e pesquisadores em Arqueologia, vimos nos manifestar sobre a proposta de realização de um sítio escola na área impactada pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte, recentemente divulgada por empresa de consultoria através do site da SAB (Sociedade de Arqueologia Brasileira).

Esta obra segue a descumprir as condicionantes do licenciamento ambiental e vem gerando irreversível desestruturação sobre as formas de vida dos povos indígenas e comunidades tradicionais da região. Foi acusada de causar um etnocídio indígena pela Procuradora Federal da República, Thaís Santi, também por afetar e violar direitos fundamentais dos demais povos tradicionais com remoções forçadas e degradação ambiental.

Consideramos grave o fato de que o Estado não exigiu nenhum trabalho etnoarqueológico neste empreendimento, isolando os arqueólogos das comunidades tradicionais locais. Tampouco está claro se o destino da coleção arqueológica resgatada será a cidade de Altamira e se o material estará disponível para os descendentes das populações que ocuparam essa região.

Em Belo Monte o resgate do patrimônio arqueológico tem assumido uma conotação fetichista, ou seja, é o resgate do patrimônio por ele mesmo – algo que a lei prevê, mas que devemos começar a questionar e propor alternativas que sejam igualmente respaldadas pela legislação. Tentar reconstruir a história dentro de um processo que acaba com a possibilidade de transmissão de conhecimentos para as próximas gerações nos parece um paradoxo. Naturalizar e mercantilizar este processo, que leva à destruição ambiental e que representa a desestruturação cultural dos povos – que, em muitos casos, podem ser descendentes daqueles que produziram o patrimônio arqueológico que está sendo escavado – implica participar de um processo totalitário.

Preocupações semelhantes levaram a Sociedade de Arqueologia Brasileira em reunião da SAB Norte em agosto de 2014 a aprovar, em Assembleia Geral na cidade de Macapá, estado do Amapá, uma moção de Solidariedade para com os Povos do Tapajós. Um apelo foi feito aos colegas de profissão para não participar do licenciamento ambiental das hidrelétricas da Bacia do Tapajós, enquanto a consulta livre, prévia e informada (conforme estipulada pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, OIT e da qual o Brasil é signatário), não fosse efetuada entre os povos indígenas e comunidades tradicionais afetadas e reconhecida como tal pelo Ministério Público Federal. No dia 15/06/2015 o juiz federal Ilan Presser suspendeu o licenciamento da hidrelétrica de São Luíz do Tapajós e determinou a necessidade de realização da referida consulta.

Acreditamos que um sítio escola deva, antes de tudo, ser norteado por uma perspectiva de ensino pautada por preceitos teóricos explícitos, onde a metodologia aplicada e a ética profissional estejam alinhadas para que os estudantes participem de um processo de formação integral, o que necessariamente inclui o desenvolvimento de um senso crítico em relação ao contexto social em que atuam. Hoje, em pesquisas arqueológicas em áreas que envolvem povos originários e comunidades tradicionais, não é mais possível desconsiderar o contexto social circundante e desenvolver projetos ignorando ou alienando seus moradores. Perguntamos se é correto para a formação de novos arqueólogos realizar pesquisa e ensino em situações onde os seus fundamentos não atendam aos pressupostos humanitários e ambientais elementares sugeridos pela ONU e seus diversos organismos.

Por estes motivos, manifestamos publicamente nossa contrariedade à proposta tal como ela foi divulgada, recomendando que ela não seja implementada. Propomos ainda discutir a criação de um protocolo único pelo IPHAN, na forma de uma portaria e com termos de referência específicos para cada caso, que definam com transparência todos os passos da pesquisa arqueológica em contextos onde há povos indígenas ou tradicionais, ou mesmo grupos sociais que vivam nos locais afetados. Uma proposta deste tipo implica, ainda, a participação do Ministério Público Federal, da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), da Fundação Palmares, de movimentos sociais, da SAB e de outros setores da sociedade nacional. Isto deveria envolver também a obrigatoriedade da divulgação e da publicação detalhada dos resultados dentro de um período previamente estipulado, igualmente dentro de um protocolo único e rigoroso.

Brasil, 24 de junho de 2015. Firmamo-nos aqui,

  • Anderson Márcio Amaral Lima – Técnico do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá;
  • Anne Rapp Py-Daniel – Docente da Universidade Federal do Oeste do Pará;
  • Ariana Silva Braga – Doutoranda da Universidade Trás-os-Montes e Alto Douro;
  • Bruna Cigaran da Rocha – Docente da Universidade Federal do Oeste do Pará;
  • Bruno Sanches Ranzani da Silva – Doutorando do MAE/Universidade de São Paulo;
  • Camila Pereira Jácome – Docente da Universidade Federal do Oeste do Pará;
  • Carla Gibertoni Carneiro – Educadora do MAE/Universidade de São Paulo;
  • Célia Maria Cristina Dermatini – Apoio ao Ensino e Pesquisa do MAE/Universidade de São Paulo;
  • Cínthia Moreira – Docente da Universidade Federal do Oeste do Pará;
  • Claide de Paula Moraes – Docente da Universidade Federal do Oeste do Pará;
  • Cláudia Turra Magni – Docente da Universidade Federal de Pelotas;
  • Cristiana Barreto – Pós-doutoranda do MAE/Universidade de São Paulo;
  • Daniella Magri Amaral – Doutoranda do MAE/Universidade de São Paulo;
  • Eduardo Bespalez – Docente da Universidade Federal de Rondônia;
  • Eduardo Góes Neves – Docente do MAE/Universidade de São Paulo;
  • Eduardo Kazuo Tamanaha – Pesquisador do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá;
  • Elisangela Regina de Oliveira – Docente da Universidade Federal de Rondônia;
  • Erêndira Oliveira – Mestranda do MAE/Universidade de São Paulo;
  • Fabiana Rodrigues Belem – Doutoranda do MAE/Universidade de São Paulo;
  • Fábio Guaraldo de Almeida – Mestre em Arqueologia;
  • Fabíola Andréa Silva – Docente do MAE/Universidade de São Paulo;
  • Francisco Antônio Pugliese Junior – Doutorando do MAE/Universidade de São Paulo;
  • Francisco Forte Stucchi – Mestre em Arqueologia;
  • Francisco Silva Noelli – Professor aposentado da Universidade Estadual de Maringá;
  • Gabriela Prestes Carneiro – Docente da Universidade Federal do Oeste do Pará;
  • Grasiela Tebaldi Toledo – Doutoranda do MAE/Universidade de São Paulo;
  • Guilherme Zdonek Mongeló – Doutorando do MAE/Universidade de São Paulo;
  • Gustavo Jardel Coelho – Graduando da Universidade Federal de Minas Gerais;
  • Jaqueline Gomes Santos – Mestranda do MAE/Universidade de São Paulo;
  • Juliana Salles Machado – Pós-doutoranda do MAE/Universidade de São Paulo;
  • Kelly Brandão Vaz da Silva – Colaboradora do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá;
  • Laura Pereira Furquim – Mestranda do MAE/Universidade de São Paulo;
  • Lorena Gomes Garcia – Doutoranda do MAE/Universidade de São Paulo;
  • Luciano Pereira da Silva – Docente da Universidade Estadual do Mato Grosso;
  • Lúcio Menezes Ferreira – Docente da Universidade Federal de Pelotas;
  • Márcia M. Arcuri Suñer – Docente da Universidade Federal de Ouro Preto;
  • Marina Nogueira Di Giusto – Mestranda do MAE/Universidade de São Paulo;
  • Márjorie do Nascimento Lima – Mestre em Arqueologia;
  • Maurício André Silva – Educador do MAE/Universidade de São Paulo;
  • Michael Joseph Heckenberger – Docente da Universidade da Flórida;
  • Michel Bueno Flores da Silva – Mestrando do MAE/Universidade de São Paulo;
  • Mikael Correia dos Santos – Historiador e graduando da Universidade Federal Vale do São Francisco;
  • Morgan J. Schmidt – Pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi;
  • Myrtle Pearl Shock – Docente da Universidade Federal do Oeste do Pará;
  • Pedro Henrique Damin – Mestre em Arqueologia;
  • Rafael Guedes Milheira – Docente da Universidade Federal de Pelotas;
  • Raoni Bernardo Maranhão Valle – Docente da Universidade Federal do Oeste do Pará;
  • Renan Pezzi Rasteiro – Mestrando do MAE/Universidade de São Paulo;
  • Sarah Kelly Silva Schimidt – Graduanda da Universidade Federal de Minas Gerais;
  • Silvia Cunha Lima – Pós-doutoranda do MAE/Universidade de São Paulo;
  • Vanessa Linke – Pesquisadora do MHNJB da Universidade Federal de Minas Gerais;
  • Vera Lúcia Guapindaia – Pesquisadora do Museu Paraense Emílio Goeldi;
  • Vinícius Eduardo Honorato de Oliveira – Mestrando do Institute of Archaeology, University College London;
  • Vinícius Melquíades – Doutorando do MAE/Universidade de São Paulo;
  • Will Lucas Silva Pena – Mestrando da Universidade Federal de Minas Gerais.

Um comentário

  1. O “Sítio Escola Belo Monte” representa a falta de ética profissional de mercenários da arqueologia.

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