Estudar ou Não Estudar? Para Arqueólogos, Eis a Questão

Uma batalha amarga pode ser travada sobre os restos humanos antes que eles descansem em paz

Publicado originalmente em 4 de março de 2016,

por Benjamin Plackett

Traduzido por Daniela Dias Ortega

O estudo de restos humanos, tanto históricos quanto pré-históricos, é um empreendimento surpreendentemente polêmico. É uma prática cuja ética acende um debate feroz e opiniões fortes sobre o que é moralmente aceitável entre especialistas e também leigos.

Esses estudos podem revelar informações de valor inestimável; podem ajudar historiadores a descobrir “quem fez isso” em mistérios de assassinatos antigos. Podem revelar que tipo de vida aquela pessoa e sua comunidade vivia. E, com a ajuda de técnicas de DNA mais recentes, há a possibilidade de que os biólogos tracem as origens da evolução humana.

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Esqueleto, “oferendas” e jóias do sepultamento nº 245, necrópole Durankulak, regiao de Dobrich (Bulgária), datado em cerca de 7 mil anos atrás.

Mas, em meio a todo esse potencial, pode ser fácil esquecer que os restos são o que é deixado para trás de uma pessoa que viveu uma vida e pode ter descendentes vivos. Atitudes culturais e sensibilidades variam em torno da questão de saber se restos humanos – uma vez descobertos – devem ser mantidos e estudados, reenterrados, ou uma combinação dos dois. Esta é uma questão especialmente delicada quando se trata dos restos mortais de indígenas no continente americano. O histórico de violações a cemitérios, que foram rotineiramente saqueados para estudos no final do século XIX, pode ser difícil de conciliar com o valor científico de descobertas inovadoras.

Um “Boom” à Pesquisa

Esqueletos antigos são fontes preciosas, e como qualquer outra coisa de valor, eles se tornaram objetos de rivalidade, com objetivos e desejos conflitantes. Argumentos sobre alguns dos esqueletos mais cientificamente estimados foram trazidos para o Supremo Tribunal dos EUA, com pesquisadores processando no intuito de terem o direito de estudar os ossos.

Alguns arqueólogos argumentam indefinidamente a favor do armazenamento e catalogação de quase todos os esqueletos humanos descobertos em escavações arqueológicas. A ciência da análise dos ossos se desenvolve muito rapidamente, eles alegam. Nunca se sabe quais outras informações poderão ser extraídas pela tecnologia do futuro.

Outros trazem a questão de que os ossos humanos devem ser rapidamente reenterrados após um estudo limitado, por respeito.

“É mais um espectro do que uma dicotomia”, disse Alison Galloway, uma antropóloga biológica da Universidade da Califórnia, Santa Cruz, que é especializada no estudo de esqueletos humanos.

“Eu caio em algum lugar entre os dois. Eu estou acostumada a olhar para os restos, captando a informação e, em seguida, devolvendo-os”, disse ela.

Alguns países têm leis rigorosas para arbitrar, enquanto outros permitem a critério do antropólogos e arqueólogos a desempenhar um papel mais influente.

Em muitas circunstâncias, Galloway estimou que dois anos é uma quantidade aceitável de tempo para manter um esqueleto antes de enterrá-lo — o que também é conhecido como “repatriação”.

“Mas onde há requerentes legais para esses restos, não devemos nos interpor no caminho”, acrescentou.

O Dilema Legal e Moral

No Reino Unido a maioria dos enterros mais antigos que 100 anos são considerados arqueológicos — tudo mais jovem está sujeito ao Human Tissue Act, o que torna ilegal remover, armazenar ou utilizar tecidos humanos sem consentimento. Não significa que qualquer coisa mais antiga seja automaticamente liberada. Uma licença do Ministério da Justiça é necessária para escavar, mas sem a complexidade de uma minoria indígena a ser considerada, as coisas são relativamente simples em comparação com os EUA.

“Existem orientações profissionais para delinear as melhores práticas”, disse Timothy Insoll, um professor de Arqueologia Africana e Islâmica da Universidade de Manchester, na Inglaterra. “Em certa medida é criterioso, mas você tem que ser muito cuidadoso sobre como você armazenaos esqueletos”, acrescentou.

Charlotte Roberts, uma professora do departamento de arqueologia da Universidade de Durham, na Inglaterra, e presidente da Associação Britânica de Antropologia Biológica e Osteoarqueologia, assume uma posição semelhante à Galloway.

A associação de Roberts criou um código de ética as normas para aconselhar e guiar arqueólogos.

O estudo de restos humanos tem de começar a partir do reconhecimento de que ele próprio é um privilégio e não um direito, insistiu Roberts.

“Certamente não nomeie esqueletosque  você está estudando”, disse Roberts, “Eles têm que ser tratados com dignidade e respeito.”

Ela defende manter esqueletos de importância específica em caso de a tecnologia futura poder produzir mais resultados, mas ela não é a favor da manutenção de todos os espécimes como uma rotina.

“Além disso, os museus estão ficando sem espaço e muitas vezes é uma questão de dinheiro também”, ela acrescentou.

Outros especialistas têm opiniões mais fortes.

“É quase sempre cientificamente importante manter vestígios arqueológicos”, disse Tim White, diretor do Centro de Pesquisa de Evolução Humana da Universidade da Califórnia, em Berkley. White usa a biologia e análise óssea para reunir dados sobre o passado evolutivo dos seres humanos.

“Eu não afirmando que os restos de esqueletos só têm valor para os descendentes em particular”, disse White. Embora tenha acrescentado que ele respeitaria a decisão de reenterramento se os requerentes fossem devidamente informados sobre o valor científico do esqueleto e como os ossos seriam estudados. “Mas muitas vezes estas condições não se encontram”, queixou-se.

White detém uma convicção forte de que todos os restos humanos cientificamente significativos devem ser estudadas e que os arqueólogos têm a responsabilidade de garantir que isso aconteça; um princípio que ele tem apresentado nos tribunais.

Uma Batalha Legal Pelos Restos

Dois esqueletos com ossos bem preservados — eventualmente com os genomas mais antigos da América do Norte — foram descobertos em 1976 em terras de propriedade da Universidade da Califórnia. Eles têm entre 9.000 e 9.600 anos de idade. Uma vez que a universidade recebe financiamento público, artefatos e ossos descobertos em sua propriedade estão sujeitos ao Ato de Proteção e Repatriação dos Sepultamentos Nativo Americanos (NAGPRA), que foi promulgado em 1990.

Ela exige a repatriação dos esqueletos de nativos havaianos e índígenas americanos aos seus descendentes diretos e povos culturalmente afiliados.

Os dois esqueletos foram estudados no período compreendido entre a sua descoberta e a ratificação da NAGPRA, antes de a universidade bloquear o acesso a eles e iniciar procedimentos para repatriá-los à nação Kumeyaay perto de San Diego. Avanços tecnológicos indicam que agora é possível sequenciar todo o genoma.

White era parte de uma ação judicial para forçar a universidade a permitir que os ossos fossem analisados com técnicas modernas.

“Eu sei o quão raro e verdadeiramente insubstituível estes esqueletos são”, disse ele.

Durante o curso do processo, os restos foram mantidos pela Universidade da Califórnia em um armazém de arqueologia no sul da Califórnia.

O porta voz da Comissão de Repatriação Cultural dos Kumeyaay, Steve Benegas, disse anteriormente que essa nação deve ter o direito de decidir se os ossos serão objeto de qualquer análise no futuro e que os esqueletos devem estar na posse deles. Ele também acrescentou que ele tem pouca fé em como a Universidade da Califórnia tem conduzido o estudo dos ossos do passado. “A universidade tem tratado esta questão muito mal ao longo dos anos”, disse ele em entrevista à Wired em 2011, “Nós não temos nenhuma confiança neles. Eles têm tratado os restos de nossos antepassados sem respeito.”

White alega que o NAGPRA não está a ser devidamente aplicada, uma vez que os ossos devem ser repatriados para seus povos afiliados. White afirma que esses ossos em particular, não foram definitivamente provados em serem da nação Kumeyaay.

“As etnias se moviam muito no passado”, explicou Galloway, “O fato de que você encontrou material esquelético em uma área não significa necessariamente que ele é da etnia que atualmente vive lá “.

“A universidade tem meramente usado geografia e não realizou uma investigação adequada em afinidade”, disse White.

Considerações Culturais e Religiosas

Em outras partes do mundo, a religião torna difícil, se não impossível, estudar certos sepultamentos.

“Há uma proibição da perturbação aos mortos. Se eles são muçulmanos, você não os toca. É simples assim”, explicou Insoll, “Se você está pesquisando sepultamentos pré-islâmico, é diferente.”

Insoll completou muitas escavações arqueológicas no Oriente Médio e na África, desenterrando os restos mortais de seres humanos que morreram antes da fundação do Islã há cerca de 1.400 anos atrás.

Antes de colocar a pá à sujeira, Insoll primeiro tem que se certificar de que ele não está perturbando esqueletos enterrados na fé islâmica. Um exame de superfície pode mostrar se os corpos foram enterrados de frente para Meca, uma tradição no Islã, e se eles têm quaisquer bens relacionados ao sepultamento, como um tesouro, enterrado ao lado dos corpos. Esses bens são uma tradição pré-islâmica e não algo encorajado na fé.

Insoll disse que o veto à escavação de esqueletos muçulmanos é perfeitamente razoável e ele nunca lutaria para derrubar a proibição. Mas ele admitiu que isso cria uma lacuna considerável nos livros de história.

“É perfeitamente compreensível e nós respeitamos as tradições locais”, disse ele, “Mas é uma oportunidade perdida. Nós não sabemos o quais doenças estavam circulando, nada sobre a expectativa de vida ou a mortalidade infantil.”

Isso não quer dizer que os esqueletos islâmicos não têm sido capazes de nos dizer nada sobre o mundo em que viviam. É permitido estudar ossos do passado islâmico da Espanha.

“É um contexto completamente diferente”, escreveu Sarah Inskip, uma professora assistente em osteoarqueologia humana na Universidade de Leiden, na Holanda, via e-mail. Ela estudou restos islâmicos na península Ibérica. “A coleção em que trabalhei tinha sido escavada com a permissão da comunidade islâmica local”, acrescentou.

Em alguns países árabes há exceções à regra. Na Jordânia, por exemplo, é legal estudar os restos de muçulmanos se eles foram perturbados acidentalmente. É o que aconteceu com Pedro Akkermans, um colega de Inskip do que se especializa em escavações do Oriente Médio. “Você ainda precisa reenterrar os restos”, ele disse, “mas você está autorizado a investigar antes de fazer isso.” Ele acrescentou que o reenterramento geralmente ocorre dentro de alguns meses.

Na Califórnia, White tem processado sua universidade durante vários anos, mas acabou de perder a batalha final quando a Suprema Corte se recusou a ouvir o seu caso no final de janeiro. Os restos irão agora ser entregues para o requerente, a nação Kumeyaay.

“Eu e os meus colegas teríamos levado uma questão de semanas para fazer a análise”, ele suspirou. Mas, nem todos os esqueletos encontram-se na mesma situação; e para White, por alguns vale a pena lutar.

Fonte: Inside Science

Crédito da Imagem: Ann Wuyts via http://bit.ly/24Gb1aZ.
Informações legais: https://creativecommons.org/licenses/by/2.0/deed.en.

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