Reavaliação do sítio Alice Boer traz fim a um impasse sobre a antiguidade da presença humana em SP

Por: Victor Guida

Descoberto na década de 1960 por um colecionador, o sítio arqueológico Alice Boer é famoso pelas controvérsias em relação a sua idade de ocupação, originalmente sugerida de mais de 14 mil anos atrás e colocando-o como um dos sítios brasileiros mais antigos já encontrados. Essa situação complicada pode ter sido solucionada pela pesquisa recém-publicada de Araujo e colaboradores.

Breve histórico do sítio

O sítio Alice Boer, localizado em Rio Claro – SP, foi escavado inicialmente entre as décadas de 1960 e 1980 e rapidamente se tornou popular por um motivo: as primeiras datações radiocarbônicas realizadas nas camadas com vestígios arqueológicos, como pontas de flecha e lesmas (um tipo específico de artefato), davam indícios que o sítio foi ocupado cerca de 14 mil anos atrás. Essa data significa que a ocupação do sítio era mais antiga do que a hipótese de povoamento das Américas vigente naquela época, de que grupos humanos da cultura Clovis chegaram na América do Norte a cerca de 13 mil anos atrás.

Essa não foi a data mais antiga publicada para esse sítio. Datações posteriores realizadas entre 1970 e 1980 nas camadas mais profundas que, segundo a equipe de arqueólogues da época, continham artefatos líticos indicavam que o sítio datava de 30 mil anos ou mais.

Mas por volta da década de 1990, começaram a aparecer dúvidas sobre as datações e os artefatos líticos, pois destoavam consideravelmente do consenso científico da época. Consequentemente, sua popularidade e sua citação na literatura acadêmica decresceu com o passar do tempo, apesar de outros sítios com datas mais antigas terem sido descobertos em décadas seguintes.

Reavaliação do sítio

Em 2011, uma equipe liderada pelo professor Drº Astolfo Gomes de Mello Araújo, do MAE-USP, e composta por pesquisadores do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisas em Evolução, Cultura e Meio Ambiente do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (LEVOC-MAE-USP) e do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biociências da USP (LEEH-IB-USP), decidiu reavaliar o sítio Alice Boer munidos de novas tecnologias e métodos de análise. “Afinal, mesmo que houvesse dúvidas sobre as datações e o caráter antrópico, nenhum pesquisador, por três décadas, se deu ao trabalho de realizar novas pesquisas sobre o sítio a fim de verificar se ele poderia mesmo ser descartado como um sítio pleistocênico”, nos conta o arqueólogo Dr. João Carlos Moreno de Sousa, um dos autores do artigo, sobre as motivações para a nova escavação.

Limpeza do perfil da trincheira, antes da coleta das amostras para datação em 2011. Imagem: Arquivos do LEVOC-MAE-USP.
Praia do rio Cabeça, a 10 metros da trincheira escavada. Note a presença de vários seixos e calhaus na praia. Imagem: João Carlos Moreno de Sousa.

As novas escavações realizadas resultaram em novas datações, nas quais foram usadas as técnicas de radiocarbono e de luminescência opticamente estimulada (OLS). Segundo o Dr. Moreno de Sousa, o uso de diversas técnicas de datação foi necessário devido a diferentes motivos. Um deles é referente a pouca quantidade de carvão preservado disponível para datação. Outro motivo foi buscar “[…]verificar se não havia problemas nas amostras ou nos métodos empregados pela primeira pesquisadora”, o que requer o uso dos mesmos métodos usados nas pesquisas anteriores.

Os resultados foram esclarecedores. As novas datações indicam que o sítio foi ocupado entre 8.000 e 6.100 anos atrás, bem mais recente do que se pensava inicialmente. Já as análises dos artefatos líticos demonstraram que não havia nenhum material arqueológico na camada de 30 mil anos, e que as peças lascadas ali encontradas são um produto natural criado pela ação da correnteza de um antigo rio próximo ao sítio.

No centro da foto: Calhau de sílex lascado naturalmente pela ação da antiga correnteza do rio. Essa é uma parte exposta do antigo terraço fluvial agora exposta na margem do rio. Peças como esta, encontradas na escavação que revelou outra parte do terraço fluvial, foram confundidas com artefatos entre os anos 70 e 80. Imagem: João Carlos Moreno de Sousa.

A análise dos artefatos líticos, como pontas de flechas e lesmas, foi realizada por métodos sistemáticos, algo inédito para o material lítico deste sítio, nos conta o Dr. Moreno de Sousa. Segundo ele, “esta análise se fazia necessária, não apenas para verificar o padrão cultural da ocupação datada do Holoceno Médio, mas também para verificar se as peças lascadas do nível pleistocênico eram resultado de lascamento por humanos ou não”.

O resultado dessas análises demonstrou que o grupo humano que ocupou o sítio está associado à indústria Rioclarense e não à Tradição Umbu, como inicialmente apontado por outros pesquisadores em publicações posteriores. É importante ressaltar aqui que pesquisas recentes indicam que o modelo de Tradição Umbu não é mais válido devido à grande diversidade cultural e de período abrangido pelo modelo.

Pontas de flecha referentes à indústria Rioclarense encontradas no sítio Alice Boer e uma lesma. Imagem: retirada de Araujo et al., 2021.

O Dr. Moreno de Sousa nos diz que a associação com a indústria Rioclarense mostra a persistência dessa tradição cultural ao longo do tempo, já que as datas mais antigas para ela chegam a 11 mil anos atrás. Isso indica uma duração de cerca de 4.500 anos desta tradição cultural, considerando que a presença mais recente dela no sítio Alice Boer seja de cerca de 6.500 anos atrás. Aponta também que as primeiras tradições culturais aqui no Brasil eram duradouras, trazendo o exemplo de outra cultura com grande persistência temporal pesquisada pela sua equipe, a Lagoassantense (associada a Luzia). Finaliza ressaltando que elas não estão culturalmente relacionadas ao povo Clovis.

Perguntado sobre as maiores contribuições dessa pesquisa, o Dr. Moreno de Sousa fala da importância de “dar um ponto final sobre a antiguidade da ocupação humana para o sudeste do país que, até o momento, não apresentou evidências mais antigas de 12,5 mil anos.”

Comenta também que mostra a importância de se replicar pesquisas na área da arqueologia, ainda mais sob novas metodologias e abordagens. Explica que “as novas datas e análise do material lascado mais antigo mostrou que as pedras não foram lascadas por humanos, sendo apenas um resultado natural da ação do rio, que formou um terraço naquele local, numa época em que o rio passava por um lugar diferente de onde está localizado atualmente”.

A fim de reforçar a importância de replicar pesquisas arqueológicas, lembra do caso da Serra da Capivara. A região foi escavada durante as décadas de 1980 e 1990 por Niéde Guidon, que realizou datações que indicaram a ocupação humana há cerca de 50 mil anos na região, e por Fabio Parenti, cuja análise dos materiais lascados mostrou que eram de fato ferramentas feitas por humanos. A comunidade internacional da época teve uma má recepção dos resultados dessas pesquisas. No entanto, desde os anos 2000, o arqueólogo francês Eric Boëda coordena uma equipe que retornou à Serra da Capivara e que tem replicado análises do material lascado, realizado novas escavações e datações em diversos sítios da região, inclusive em outros que ainda não tinham sido pesquisados. Os resultados dessas pesquisas trouxeram novas informações sobre o povoamento da região e confirmado até o momento as conclusões chegadas por Guidon e Parenti. “Não existem mais critérios para recusar estes resultados e antiguidade da presença humana naquela região”, diz o Dr. Moreno de Sousa.

De fato, a pesquisa de Araujo e colaboradores é um exemplo da importância de se replicar pesquisas arqueológicas. Ao fazer uma reavaliação, é possível tentar replicar os primeiros resultados e, assim, confirmar ou não a hipótese proposta à época. Também é possível obter novas informações dos materiais já a disposição por meio de metodologias novas, informações essas que antes eram impossíveis ou muito difíceis de se obter à época da pesquisa original. Essas ações contribuem para um melhor entendimento sobre os grupos humanos que ocuparam nosso país em tempos pretéritos, sua cultura e até mesmo como impactaram nossa sociedade atual.


O artigo usado para essa matéria pode ser encontrado aqui.

5 comentários

    • Olá, Rhones. Poderemos te ajudar melhor se você enviar essas informações e algumas fotos dos objetos para nosso e-mail (arqueologiaeprehistoria@gmail.com).

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