Por: Victor Guida
Há uma grande possibilidade de você já ter ouvido falar sobre cidades perdidas (como Atlântida e El Dorado), que alienígenas construíram pirâmides mundo afora, ou que fenícios estiveram no Brasil. Essas histórias sobre o passado da humanidade podem ser cheias de mistérios que despertam o interesse e a imaginação, mas são completamente falsas. Elas integram o que chamamos de “pseudoarqueologia”, que pode ser definida como uma interpretação do passado humano feita sem seguir o método científico, desconsiderando as evidências arqueológicas e as análises utilizadas na arqueologia. Isto é, a pseudoarqueologia é uma pseudociência.
Mas apenas apontar que é uma pseudociência não é o suficiente. É importante saber sua origem, entender sua tamanha popularidade e, o mais importante, quais os problemas que ela traz para a sociedade.
O início
A pseudoarqueologia está conectada aos anos iniciais da arqueologia, por volta da segunda metade do século XIX. O deslumbramento e a curiosidade eram grandes motivadores para aqueles que se enveredavam pelo recente campo da arqueologia. Pode-se dizer que muitos destes arqueólogos eram aventureiros curiosos em busca de mistérios antigos de civilizações espalhadas pelo mundo, uma imagem da profissão que perdura até hoje no imaginário popular e que é melhor representado pelo famoso personagem Indiana Jones.
Neste início não era difícil se deparar com histórias mirabolantes e sensacionalistas criadas e/ou divulgadas por esses arqueólogos a respeito do passado humano, em que mitos sobre cidades perdidas, civilizações antigas místicas e tantos outros eram tidos como verdadeiros. É importante ressaltar que esses primeiros arqueólogos foram fundamentais para a arqueologia e fizeram contribuições valiosas para a área, mesmo que ainda tenham ajudado a promulgar o que hoje chamamos de pseudoarqueologia.
Conforme a arqueologia ia se aprimorando ao longo das décadas, se estabelecendo como uma profissão e desenvolvendo novas metodologias e abordagens para compreender o passado, as histórias e visões fantasiosas foram sendo descreditadas e hoje já não são mais aceitas como interpretações válidas por profissionais da arqueologia.
A popularidade da pseudoarqueologia
Infelizmente, apesar dessas histórias sem fundamento científico não serem validadas pela arqueologia, elas se mantêm populares até hoje no imaginário das pessoas e estão presentes em livros, filmes, programas de TV, documentários, jogos, entre outros. Alguns exemplos famosos (ou infames) de histórias e de produções midiáticas de pseudoarqueologia são:
a) O livro “Eram os Deuses Astronautas”, escrito em 1964 por Erich von Däniken, que fala que alienígenas interagiram com humanos e foram responsáveis por construções e tecnologias de antigas civilizações humanas. É um dos livros de maior impacto na promoção da pseudoarqueologia e inspirador de diversas outras produções.
b) O programa “Alienígenas do Passado”, apresentado por Giorgio Tsoukalos, que teve início em 2010 e ainda está no ar no canal de TV a cabo The History Channel. Influenciado pela obra de von Däniken e outros, o programa aborda histórias mirabolantes sobre contato de alienígenas com humanos, abrangendo a busca de cidades perdidas, construção de pirâmides, vikings, entre outros. É hoje o programa mais popular (e, assim, mais danoso) de pseudociência no mundo.
c) O reality show “Chasing Mummies”, protagonizado pelo arqueólogo Zahi Hawass, o qual foi ao ar em 2010 no “The History Channel” e teve apenas uma temporada. Embora não aborde histórias falsas, seu problema está na representação irreal do processo de trabalho arqueológico, perpetuando o problemático estereótipo aventureiro associado a arqueologia. O que poderia ser um programa demonstrando ao público os processos da investigação arqueológica, acabou sendo uma tentativa de cópia de reality shows semelhantes ao brasileiro “No Limite”.
d) A cidade perdida da Bahia, relatada em um documento conhecido como “Manuscrito 512” encontrado em 1839 na atual Biblioteca Nacional. Talvez um dos maiores mitos arqueológicos do Brasil, a tal cidade é relatada no manuscrito como possuindo construções arquitetônicas semelhantes às do período clássico no Mediterrâneo, gerando um conto anacrônico e deslocado geograficamente.
Como se pode perceber, esses exemplos mostram histórias e abordagens incoerentes com a realidade. E mesmo assim, são bastante populares. Por que isso ocorre? É difícil apontar exatamente qual a razão de tamanha popularidade, mas há alguns fatores que contribuem para ela. Um deles é o tom de mistério, de grandes segredos e aventuresco dessas histórias, que chama a atenção e cativa o público, e instiga a continuar a consumir esse tipo de narrativa.
Outros dois fatores que estão intimamente associados é o alto retorno financeiro de obras desse tipo e o baixo (ou inexistente) rigor científico necessário para suas produções, o que facilita e estimula ainda mais a produção e divulgação da pseudoarqueologia.
Por fim, uma postura comum de quem propaga essas histórias é o oferecimento de uma explicação simplista (e errada) de questões complexas, em conjunto de um ar de certeza e total domínio do assunto. Esses também são fatores que contribuem para uma maior assimilação e popularidade dessas histórias sobre um passado imaginário.
Qual o problema da pseudoarqueologia?
Por que ela tão grave e problemática? Afinal de contas, histórias fantasiosas, mirabolantes e cheias de mistério existem há milênios e são uma ótima fonte de entretenimento, não é mesmo? Bom, quando essas histórias dizem explicar o passado das civilizações humanas, elas se tornam perigosas e extremamente danosas.
Um dos maiores problemas é o racismo e o colonialismo que estão presentes no núcleo das narrativas pseudoarqueológicas. Ao afirmarem que uma civilização não seria capaz de ter sido a criadora dos vestígios arqueológicos encontrados e que somente uma civilização mais “desenvolvida” poderia ter sido responsável por esses feitos, essas narrativas subestimam, negligenciam e obliteram a cultura, inteligência e história dessa civilização. É o caso, por exemplo, de associar a construção das pirâmides do Egito e o desenvolvimento das sociedades Incas, Maias e Astecas ao contato com alienígenas.
Outro, é a apropriação dessas histórias por projetos nacionalistas, que buscam distorcer evidências científicas e criar narrativas de forma a favorecerem aos seus ideais. Um caso recente, mas longe de ser o único, foi o uso de teorias pseudoarqueológicas pela Alemanha nazista para a criação e estabelecimento do mito da raça ariana, o qual está vivo até hoje e responsável por um dos episódios mais horrendos da história moderna.
Ainda, as narrativas pseudoarqueológicas descartam evidências científicas e o método científico para criação de suas explicações de mundo. Aqueles que a promovem o fazem com a intenção de colocá-las em pé de igualdade com aquelas baseadas na ciência. Dessa forma, a pseudoarqueologia tenta descreditar o pensamento científico, dizendo que explicações sem bases na realidade são tão válidas quanto as que são corroboradas com uma infinidade de evidências. Esse tipo de pensamento abre o caminho para diversas outras pseudociências e explicações falsas tão danosas quanto. Por exemplo, o uso de medicamentos e técnicas ineficazes para tratamento de doenças, agravando a doença ou então causando a morte da pessoa; esse é o caso da homeopatia, ingestão de óleos essenciais, entre vários outros.
Esses são só alguns exemplos o do porquê a pseudoarqueologia é problemática e porque sua propagação e validação é tão perigosa.
Para finalizar, é importante dizer que ignorar as histórias dos povos do passado e suas contribuições para a humanidade é extremamente desrespeitoso. Não precisamos dessas narrativas imaginárias para nos deslumbrarmos com o passado da humanidade. A diversidade cultural dessas sociedades, a criatividade, inteligência e imaginação de cada uma delas é mais que o suficiente para ficarmos maravilhados.
Para saber mais:
CARD, J.; ANDERSON, D.S. Lost City, Found Pyramid: Understanding alternative archaeologies and pseudocientific practices. Alabama: University of Alabama Press, 2016.
FEDER, K. Frauds, Myths, and Mysteries: Science and Pseudoscience in Archaeology. 10ª ed. USA: Oxford University Press, 2019.
Victor Guida, parabéns pela bela e maravilhosa narrativa ! Gratidão por compartilhar ! Abraços Julio
Agradeço pelo comentário, Julio.
Ótima matéria Victor!
Obrigado, Ernandes!