Estudo descreve a relação dos primeiros habitantes do sudeste brasileiro com a natureza e relevo, mais de 10 mil anos atrás

Estudo recentemente publicado por pesquisadores da UNICAMP, USP, FURG, UNIVESP e Fundação Araporã descreve o resultado de escavações realizadas no sítio arqueológico Rincão I – na porção central de São Paulo. Foram analisados mais de 500 artefatos de rocha lascada encontrados no local, e discutida sua inserção no contexto dos solos, sedimentos e relevo em que inserem-se. A pesquisa descreveu como antigos povos de caçadores-coletores estabeleciam um modo de vida associado simultaneamente a dois diferentes ambientes, lidando tanto com áreas alagáveis, quanto com áreas secas. Esta ligação simultânea com múltiplos ambientes se mostra presente mesmo na própria localização do sítio, situado no limite entre a extensa planície fluvial do rio Mogi-Guaçu e dos terrenos de terra firme no entorno. Caracterizou-se no estudo como estes grupos humanos antigos usavam tanto de materiais que recolhiam no rio Mogi quanto da estabilidade de terrenos rochosos de terra firme para a preparação destas antigas ferramentas. As áreas alagáveis da planície aluvial eram usadas como fontes de matéria-prima rochosa – recolhendo-se ali os numerosos fragmentos rochosos depositados pelo rio ao longo do deslocamento das águas, e transportando-os para terrenos mais elevados, usados como abrigos e refúgios, a salvo dos efeitos das inundações do rio, onde as rochas eram trabalhadas para dar forma a artefatos de rocha lascada. 

Apenas artefatos de quartzo foram encontrados nos pontos mais profundos das escavações, enquanto nos segmentos intermediários e superficiais foram resgatados também artefatos feitos de outros tipos de minerais e rochas. Sugerindo, assim, que houve mudanças na relação com o ambiente por estas antigas populações ao longo do tempo. Estas mudanças podem estar relacionadas com modificações da paisagem que ocorreram durante o tempo da ocupação humana antiga. Dentre tais modificações, incluem-se alterações do clima (passagem de clima seco para úmido) e movimentos do Rio Mogi-Guaçu, que apresentou importantes deslocamentos laterais (estando até mais de 1200 metros distante de sua posição atual) e verticais (tendo estado no tempo da ocupação 5 metros mais alto do que nos dias de hoje). Estes movimentos do rio cortaram os terrenos próximos ao rio, gerando escarpas de mais de 30 metros de altura, sobre as quais o sítio arqueológico estudado localiza-se.

A pesquisa discute, ainda, que a maneira de trabalhar as rochas na forma de pontas de pedra e artefatos plano-convexos são semelhantes a encontra em sítios arqueológicos de Rio Claro e Botucatu,  mas usando diferentes tipos de rocha, sugerindo que estes grupos humanos se adaptaram a particularidades das condições ambientais da região central de São Paulo.

O estudo caracteriza também a associação de trezentas ferramentas de pedras lascadas com solos e depósitos de areia datados entre 20 e 5 mil anos em dois diferentes laboratórios – um nacional (na USP), e outro no exterior. Estas datações são consistentes com os contextos de transformações do relevo, sedimentos e dos solos do vale do Rio Mogi-Guaçu – sendo semelhantes as obtidas em estudos sobre solos e sedimentos de áreas não-arqueológicas dos entornos deste mesmo rio. Em paralelo, estas idades são em parte controversas do ponto de vista das teorias atualmente mais aceitas para a ocupação humana de São Paulo e do sul e sudeste do Brasil. Em estudos anteriores em outros sítios arqueológicos do sul e sudeste do Brasil, as datações mais antigas associadas a vestígios de presença humana encontram-se usualmente contidas entre 10 e 12,5 mil anos atrás. 

O artigo aponta, assim, a necessidade de continuidade de estudos na área central de São Paulo, que apresenta um interesse crescente para pesquisas científicas nas áreas de arqueologia, geografia e geologia. 

A pesquisa foi publicada na revista científica “Journal of Quaternary Science”, e foi dedicada à memória de Manoel Martins (1959-2023), professor da rede pública de geografia e sociologia, que encantou e incentivou vocações e vidas de incontáveis estudantes na região de Araraquara, onde a pesquisa foi feita. 

Obs – o artigo apresenta resultados parciais da tese de doutorado  desenvolvido na UNICAMP por Pedro Michelutti Cheliz sob orientação do professor Francisco Ladeira em parceria com a Fundação Araporã, FURG e com o Laboratório de Luminescência da USP (LEGAL-USP). O material pode ser conferido aqui: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/jqs.3505

Artefatos de pedra lascada encontrados em meio a escavações no sítio arqueológico Rincão I
Atividades de mapeamentos dos entornos do sítio arqueológico Rincão I, com vista para as adjacentes amplas planícies do Rio Mogi-Guaçu
Escavações realizadas no sítio Rincão I. Fonte – Zanettini Arqueologia
Escavações no sítio arqueológico Rincão I.
Coletas de amostra de solo usando trado holandês de 6 m no sítio arqueológico Rincão I
Amostra de solo do sítio Rincão I vista no microscópio
Detalhe de amostra de solo do sítio visto no microscópio, onde se destaca grão de quartzo com tamanho muito maior que a dos demais, e contornos caracterizados por quebras bastante angulosas. Trata-se um microfragmento de lascamento – um resíduo microscópico do trabalho humano e dos impactos de uma rocha contra a outra que geraram os artefatos do sítio. Setas vermelhas e azuis destacam fraturas deixadas pelos impactos de uma rocha contra outra.
Coleta de amostras e registro visual de unidade de escavação aberta durante as atividades de pesquisa no sítio arqueológico Rincão I

2 comentários

  1. Victor Guida, parabéns pelo estudo minucioso, aqui na região de Andrelândia, no circuito das montanhas mágicas da Mantiqueira mais precisamente no parque arqueológico da Serra de Santo Antônio ,foi encontrado pontas de flechas também lapidadas com pedras quartzo, pinturas rupestres com 650 figuras, também diversos utensílios como machadinhas, soquetes que eram usados para quebrar triturar coquinhos para se alimentarem, utensílios de caça, pesca, uma canoa com 7 metros de comprimento. Venha conhecer.

    • Olá, Valter, agradecemos pelo comentário. Mas não fui eu (Victor) que fiz o estudo, eu só estou divulgando o trabalho que foi feito pelo Pedro Michelutti Cheliz e por outros colaboradores. É parte da tese de doutorado dele. Inclusive tem um link no texto que leva para a pesquisa dele, caso queira ler mais sobre.
      E com certeza irei visitar o parque arqueológico quando eu tiver a oportunidade. Parece muito interessante!

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