A mumificação no Egito antigo

Nossa sociedade tem um fascínio pelo Egito antigo, sua cultura, religiosidade, engenharia, entre outros aspectos diversos, sendo um deles a mumificação, que era realizada em humanos e em animais. Mas você sabe o que é mumificação e como ela era feita? Por quanto tempo foi praticada? Se houve alterações no processo de mumificação ou ele se manteve constante através dos períodos em que foi realizado? Este texto busca trazer algumas respostas para essas perguntas, tentando demonstrar a complexidade e a importância da mumificação para os antigos egípcios.

O que é mumificação?

Mumificação é um processo de preservação do corpo pela inibição da atividade e proliferação (reprodução) de agentes decompositores (ex.: bactérias, fungos e outros micro-organismos). Geralmente isso ocorre pela remoção dos líquidos do corpo (água), pelo congelamento do corpo ou pelo armazenamento em ambiente sem oxigênio (o que impede a proliferação de micro-organismos). Assim, a mumificação pode ser tanto natural – como no caso de corpos mumificados encontrados em locais desérticos, em geleiras (ex.: corpos congelados de alpinistas no topo do Monte Everest) e em lagos pantanosos com acúmulo de turfa (ambiente com ausência de oxigênio) – quanto artificial – como no caso do processo de mumificação empregado durante o Egito antigo que abordaremos aqui.

Por quanto tempo a mumificação foi praticada no Egito antigo?

Evidências arqueológicas indicam que ela foi praticada por mais de 4.000 anos, com as primeiras mumificações ocorrendo durante o período Nacada II (que perdurou entre 3.600 a.C. e 3.200 a.C.) e as últimas durante a era Cristã. Essa longa duração nos mostra que a mumificação era uma prática de extrema importância na cultura egípcia e ter uma compreensão sobre os períodos que compreendem o Egito antigo é fundamental para vislumbrar tal significância.

Mas, antes de trazemos aqui um breve resumo sobre a extensão temporal do Egito antigo, é necessário informar que as datas exatas de início e fim de determinados períodos sofrem pequenas variações de acordo com os autores usados. Então é possível que você encontre datas levementes distintas quando for ler sobre o Egito antigo em outros livros e textos.

Bom, retomando o assunto, o Egito antigo se inicia em 4.000 a.C. e termina em 395 d.C. Entre 4.000 a.C. e 3.050 a.C. temos o Egito pré-dinástico, onde de fato a mumificação começa a ser praticada, mesmo que de forma ainda bem rudimentar. Já entre 3.050 a.C. e 332 a.C. temos o período dinástico, composto de 31 dinastias, as quais são distribuídas entre três impérios (Antigo Império, Médio Império e Novo Império) e três períodos intermediários (Primeiro Período Intermediário, Segundo Período Intermediário e Terceiro Período Intermediário). Os impérios do Egito antigo são períodos de tempo em que o Egito estava unificado e era regido por um governo central estável. Enquanto que nos períodos intermediários não havia um governo central e, frequentemente, havia dinastias governando grandes áreas de forma independente. A época dinástica é seguida pelos períodos Ptolomaico, 332 a.C. a 30 a.C., e Romano, 30 a.C. a 395 d.C. A imagem abaixo mostra com maior detalhe essa divisão temporal do Egito antigo.

A relação entre a mumificação e a religiosidade no Egito antigo

Para entender o ritual da mumificação no Egito antigo e os procedimentos de tal prática é necessário primeiro estar a par de certos aspectos religiosos da sociedade egípcia durante essa época, mais especificamente na crença da vida após a morte. De acordo com as evidências encontradas, os egípcios acreditavam que a vida na Terra era transitória, apenas uma etapa de sua existência, e que ao morrerem iriam para um local semelhante ao Egito, onde viveriam de forma eterna uma vida parecida com às suas na Terra. Há diversos nomes para esse “Egito melhorado”, mas o mais comum é Campo de Juncos, cujo termo em egípcio é Aaru ou Sekhet-Aaru.

Segundo as crenças egípcias, a pessoalidade do indivíduo, ou personhood, deveria ser preservada no plano terreno após sua morte física para que a existência deste indivíduo no Aaru pudesse ser mantida. Para isso, era extremamente importante a manutenção de todos os componentes que formam essa pessoalidade, os quais são: o nome (ren), a sombra (shuyet), a força vital (ka), a alma (ba), o espírito (akh) e o corpo físico. Consequentemente, as decorações da tumba (ex.: textos nela inscritos e objetos pessoais do indivíduo nela colocados) e dos caixões (ex.: textos e imagens), oferendas de comida realizadas após a morte do indivíduo e a mumificação do corpo fazem parte dos rituais que visam preservar a pessoalidade e assim garantir a existência eterna do indivíduo no Aaru.

Para os antigos egípcios, o corpo agia como um meio de conexão entre força vital e alma com o plano terreno e as oferendas e textos das paredes das tumbas, e a alma não poderia funcionar adequadamente no plano eterno sem o corpo no plano terreno. Dessa forma, a preservação do corpo era essencial para a sustentação da vida eterna; e é devido a tal necessidade que, provavelmente, se deu início à prática de mumificação artificial no Egito Antigo.

Mumificação e as divindades funerárias

Assim como os demais processos dos rituais funerários do Egito Antigo, todo o processo de mumificação também estava intimamente ligado a religiosidade egípcia, principalmente ao mito de Osíris e às demais divindades funerárias. O mito do deus Osíris traz desdobramentos importantes para a religião egípcia e para o processo de mumificação. Afinal, é a ressuscitação de Osíris que dá a base para a crença dos egípcios na vida após a morte. Além disso, Osíris também era considerado como o primeiro ser a ter passado pelo processo de mumificação, sendo geralmente representado pelos egípcios como um indivíduo mumificado. Ele também era responsável por decidir quem era digno da vida eterna.

Ilustração de uma representação do deus Osíris. Imagem: Jeff Dahl

Outras divindades também estão ligadas ao ritual de mumificação e à transição para a vida no Aaru, sendo algumas descritas a seguir. Um dos deuses é Anúbis, responsável pelo processo de mumificação em si, visto que, segundo a lenda, foi ele quem enfaixou Osíris. É por isso que os sacerdotes que realizavam o procedimento de mumificação utilizavam a máscara de Anúbis, representado por um chacal, pois acreditava-se que eles o incorporavam durante a mumificação.

Outras quatro deusas são responsáveis pela proteção da pessoa mumificada, de sua ressurreição e dos quatro vasos canópicos em que eram armazenados órgãos embalsamados. São elas Isis, Néftis, Neite e Sélquis. Isis e Néftis são representadas pelo milhafre-preto e suas figuras podem ser encontradas na cabeça e pés dos sarcófagos. Neite, por sua vez, é representada por um escudo perfurado por duas flechas. Já Sélquis, tida como responsável por fazer a pessoa mumificada voltar a respirar, é ilustrada como uma mulher com um escorpião em cima de sua cabeça.

Cada um dos quatro órgãos armazenados nos vasos canópicos – fígado, pulmões, estômago e intestinos – também estavam protegidos por um dos quatro semideuses conhecidos como “Os Filhos de Hórus”. O fígado era protegido por Imseti, os pulmões por Hapi, o estômago por Duamutefe e os intestinos por Quebesenuefe.

Vasos canópicos do Egito antigo exibidos no Museu Nacional de História Natural, em Washington D.C., EUA. Imagem: Daderot.

A partir desse resumo podemos que, para os egípcios, a mumificação não era apenas uma forma de preservar o corpo e/ou memória de uma pessoa. Ela estava intimamente ligada à cosmogonia egípcia, fazendo parte crucial dos rituais religiosos necessários para garantir que o indivíduo conseguisse continuar a jornada de sua existência ao entrar e permanecer no Aaru, onde viveria eternamente.

Os processos de mumificação

Para os egípcios, era crucial que a aparência da pessoa em vida fosse mantida (e às vezes até melhorada!), visto a intrínseca conexão do copo físico com a vida após a morte. Apesar de tamanha importância dada à mumificação, os egípcios não deixaram nenhum registro escrito detalhando as etapas desse processo. As informações que se têm atualmente sobre a prática de mumificação foram obtidas por meio de a) textos posteriores de Heródoto e Diodoro Sículo sobre mumificação egípcia; b) pequenas porções de textos como os papiros Apis Embalming Ritual e Ritual of Embalming, que descrevem os rituais associados à mumificação; e c) pesquisas de arqueologia experimental que buscam entender como eram as técnicas de mumificação, as ferramentas empregadas e os ingredientes utilizados.

As evidências arqueológicas indicam que várias técnicas foram desenvolvidas e adotadas ao longo das dinastias visando alcançar de forma mais fidedigna esse objetivo. Técnicas essas que variavam de acordo com o estilo preferido por grupos de embalsamadores, com o período, e com a hierarquia social – em que indivíduos com maior destaque na hierarquia egípcia dispunham de um tratamento mais aprimorado e caro, ao passo que o mínimo necessário era despendido ao processo de mumificação de indivíduos da não-elite de baixo poder econômico e político. É com essa variação em mente que as principais técnicas de mumificação de cada período são descritas resumidamente nos próximos parágrafos.

Como exposto anteriormente, evidências apontam que a mumificação artificial no Egito se iniciou no período Pré-dinástico. Nele, as tentativas de uma mumificação ideal consistiam em utilizar resina para tirar odores e preservar o corpo e o envolvendo com tiras de linho, que também eram utilizadas como preenchimento para proteger partes mais frágeis do corpo. Embora essa técnica permitisse alguma preservação, a putrefação dos órgãos internos não permitia que o corpo fosse totalmente preservado.

Inovações para responder a esse problema surgiram no Antigo Império, como a evisceração dos órgãos das cavidades abdominais e torácicas a partir de uma incisão na lateral do corpo e o uso de natrão (um sal que ocorre naturalmente no Egito) para desidratar o corpo, este último sendo empregado em todos os períodos do Antigo Império em diante. Neste período não havia uma preocupação apenas em preservar o corpo, mas também em replicar uma imagem perfeita da pessoa. Evidência disso são o enfaixamento individual de cada membro, incluindo a genitália, e a modelagem em substância gelatinosa de feições faciais, genitália e seios, nas quais pinturas eram feitas para providenciar maior detalhe e identificação de quem era a pessoa em vida. Ainda, é a partir do Antigo Império que começaram a colocar um manto de linho sobre os corpos mumificados, o qual não era decorado.

O cuidado com a preservação da imagem declinou durante o Primeiro Período Intermediário e o Médio Império. A prática de modelar o enfaixamento em determinadas partes do corpo foi abandonada, sendo a modelagem na região facial e toráxica sendo substituída por uma máscara de cartonagem. Em relação a preservação do corpo há o surgimento de outra técnica de evisceração que foi utilizada com frequência neste período. Tal técnica consiste na aplicação anal de óleo de cedro ou junípero para dissolver os órgãos e extraindo após alguns dias, pela mesma via, o material liquefeito. Ao usar essa técnica, tornava-se desnecessário a realização da incisão na lateral do corpo, o que auxiliava de certo modo na preservação da imagem do indivíduo. No Médio Império ocorrem também outras variações na mumificação, incluindo posicionamento diferente dos braços – tanto dispostos na lateral do corpo quanto cruzados sobre o tórax -, a rara realização da remoção do cérebro e o enfaixamento do corpo de forma a constituir uma forma semelhante a um casulo.

Pouco se sabe sobre os processos de mumificação do Segundo Período Intermediário devido ao pouco número de corpos mumificados recuperados e ao seu péssimo grau de conservação. No entanto, os desse período e do Novo Império que foram recuperados apresentam algumas inovações em comum, como uma maior frequência de excerebração e o posicionamento dos braços de acordo com a genitália da pessoa, em que os braços dos corpos de homem eram dispostos esticados e com as mãos cobrindo a genitália, enquanto os de mulheres eram dispostos esticados com as mãos repousadas sobre as coxas.

É devido à grande quantidade de corpos mumificados de pessoas da realeza e da população em geral datadas do Novo Império que se tem informações sobre as diferenças dos processos de mumificação entre as pessoas da elite e da não-elite. De uma forma geral, os melhores cuidados e produtos – maior qualidade de linho para enfaixar e de resinas e óleos para preservar e mascarar odores – eram reservados para os corpos mumificados da realeza, os quais também eram diferenciadas das demais por meio do posicionamento dos braços de forma cruzada sobre o peito, exclusivo da realeza nesse período. No entanto, não parecia haver diferenças em relação ao enfaixamento dos corpos, com exceção da qualidade do linho utilizado. Esse se iniciava enfaixando os membros e o torso de forma espiral, sucedido de um enfaixamento do corpo todo unindo os membros e, por fim, a inclusão do manto de linho, o qual às vezes era pintado.

É no Terceiro Período Intermediário que os antigos egípcios alcançam o ápice da mumificação no que se refere à manutenção da imagem ideal do indivíduo. É neste período que foram feitos enchimentos subcutâneos de lama, serragem e areia com a finalidade de tornar a imagem do corpo mumificado o mais parecida possível com a forma do corpo vivo. Além dos enchimentos subcutâneos, olhos de vidro eram inseridos nas órbitas oculares, e tinham a face submetida a tratamentos cosméticos para melhor denotar suas características, como pinturas de sobrancelhas e lábios e apliques de cabelo. Ainda, os corpos eram pintados de acordo com o gênero a eles atribuídos no Egito antigo – vermelho para homens e amarelo para mulheres. Por sua vez, os órgãos internos eram colocados dentro do corpo, protegidos por um invólucro, após terem sido dissecados. Por fim, o enfaixamento também sofreu alterações, com o corpo sendo enfaixado em formato de um oito (“8”), buscando dar melhor sustentação ao corpo. Esses procedimentos demonstram um grande empenho em manter o corpo preservado de uma forma mais intacta e semelhante ao indivíduo quanto possível.

Bandagem de linho com pinturas usado para enfaixar os corpos mumificados. Imagem: Marco Almbauer (Charlir Rivers Editors, 2020).

As técnicas de mumificação e, consequentemente, a preocupação com a preservação do corpo e imagem dos indivíduos começa a entrar em declínio durante a Época Baixa do Egito antigo. Abandonou-se o uso de enchimentos subcutâneos e de pintura dos corpos; os órgãos não eram mais alocados dentro do corpo; técnicas de evisceração eram realizadas com menor cuidado, gerando uma remoção incompleta dos órgãos; remoção cerebral passou a ser realizada esporadicamente; e o enfaixamento era feito com pouco rigor.

A decadência nas práticas de mumificação continua durante os períodos Ptolomaico e Romano, os últimos aqui abordados. Parte deste declínio é devido à diminuição da influência das crenças religiosas egípcias ocasionada pela conquista do Egito por outras nações. A fim de exemplo, há casos em que não foram realizadas eviscerações nem excerebrações nestes períodos. Contudo, apesar do baixo empenho na preservação do corpo, houve melhoras significantes na preservação da imagem, o que pode ser exemplificado por melhores técnicas de enfaixamento e de decoração dos corpos mumificados.

Nestes dois períodos, os corpos eram enfaixados meticulosamente com várias camadas horizontais de tecido. No período Romano, as camadas externas, às vezes coloridas, formavam um tipo de estrutura que assegurava painéis com retrato do indivíduo quando vivo. Os mantos usados para cobrí-los também tinham destaque nos períodos Ptolomaico e Romano, visto que estes possuíam cores diversas e eram extensivamente decorados com imagens das deusas protetoras (Isis e Néftis), imagem da pessoa morta, textos, entre outros.

Conclusão

Como visto, a mumificação no Egito antigo não foi algo estático e único durante toda sua existência. Pelo contrário, não só as técnicas de preservação foram aprimoradas consideravelmente ao longo do tempo, mas como houve mais de uma técnica sendo exercida durante o mesmo período. Ainda, os procedimentos e rituais de mumificação sofreram alterações entre os períodos, as quais estavam associadas a diferenças de hierarquia social, preferências dos embalsamadores, a motivos de estilo predominante e a motivos religiosos. Portanto, estudar os corpos mumificados e conhecer os processos de mumificação associados a cada período nos permite entender em parte a sociedade egípcia daquela época.

Para saber mais

BARD, K. A.; SHUBERT, S. B. Encyclopedia of the archaeology of ancient Egypt. London; New York: Routledge, 1999.

DAVID, R. A. Egyptian Mummies and Modern Science. Leiden: Cambridge University Press, 2008. 304p.

GUIDA, V. Estudo pós-incêndio dos indivíduos mumificados da coleção egípcia do Museu Nacional. Tese (Doutorado em Arqueologia) — Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2024.

IKRAM, S. Mummification. UCLA Encyclopedia of Egyptology, v. 1, n. 1, 1 set. 2010.

IKRAM, S. Death and burial in ancient Egypt. Cairo, Egypt: The American University in Cairo Press, 2015. 241p.

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