Autora: Brena Barros
A Arqueologia de Gênero surgiu nos anos 1980 em um contexto no qual a arqueologia Pós-Processual começa a questionar as abordagens positivistas da Arqueologia Processual e sua pressuposta objetividade.
Esse novo viés apontou a existência conceitual no Processualismo de uma superioridade moderna e, por conseguinte, de uma superioridade masculina, já que os homens controlavam esse processo através do domínio das tecnologias, da ocupação de postos especializados de trabalho e das tecnologias bélicas.
“A projeção positivista que a arqueologia fazia do presente ao passado, não só legitimava a sociedade do presente, mas também a sociedade patriarcal do presente”
(Hernando Gonzalo, 2007. p.2).
A abertura proporcionada pelo viés Pós-Processualista abriu caminho para outras compreensões da realidade, para o entendimento do ser humano como agente social e histórico e sua interação com a materialidade e o meio ambiente, bem como para inclusão dos sujeitos invisibilizados e, por conseguinte, para o resgate das populações colonizadas e das mulheres no registro arqueológico.
Pesquisadores como Berrocal, Díaz-Andreu, Sanchéz-Romero, Silva e colegas alertam contudo para as diferenças cruciais entre arqueologia de gênero e arqueologia feminista. A primeira é derivada da segunda e tem por objetivo se ocupar de todos os gêneros (inclusive das crianças) e não só centrar-se nas mulheres, como a arqueologia feminista, sendo esta uma arqueologia empirista. Tal abordagem, contudo, recebeu certas críticas por parte de autoras feministas que, segundo Berrocal, consideram a arqueologia de gênero como um produto da falta de compromisso político com o feminismo, o que tem sido contestado em publicações mais recentes.
Brena Barros é arqueóloga formada pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e é ativa em movimento feministas. Atualmente é chefe da divisão de patrimônio histórico artístico e cultural na Fundação Cultural de Porto Velho (FUNCULTURAL).
Gênero e Arqueologia
Autora: Camila Jácome
Na sociedade ocidental, cristã e capitalista a definição do gênero da pessoa, define-se essencialmente pelo corpo, de acordo com especificação do seu dimorfismo sexual biológico. No entanto, há inúmeros casos de controvérsias, e não é um assunto de hoje, como já tratou Foucault.
Os fatores biológicos, identidades sexuais e papeis sociais estão longe de serem equações simples e diretamente relacionadas. Cada vez mais os movimentos sociais de minorias em direitos (LGBT, de mulheres, feministas), a psicologia, as ciências humanas (sociologia, antropologia) e a história apresentam argumentos e pesquisas que desconstroem a polarização dos dois gêneros: o feminino e o masculino. Dentro dessa polarização não cabe toda diversidade de pessoas que existem e do que sentem e pensam sobre si mesmas.
O entendimento de gênero, portanto, não passa única e exclusivamente pela orientação e identidade sexual, mas por uma série de práticas sociais. Desde que nascemos nosso corpo vai sendo moldado essencialmente em duas instâncias: a física (práticas de higiene, saúde e bem-estar) e a social (modos de vestir, de portar diante do coletivo, de comer, de falar, etc). Essa construção social e cultural do corpo tem vários objetos e lugares que auxiliam na definição do gênero, por exemplo: as peças de vestuário (roupas de meninas, roupas de meninos, roupas neutras, unissex), os brinquedos (de menina, de menino, coletivos) e até mesmo os cômodos e os móveis de uma casa participam da construção de gênero. Nesse sentido, muitos autores apontam que além dos papéis sociais e de identidade certas fases da vida como a infância e a velhice são em si gêneros constituídos.
São justamente certos tipos de objetos (itens de uso pessoal ou utilitários) e espaços (áreas de habitações, de trabalho ou mesmo de sepultamento dos mortos) de uma cultura do passado que a pesquisa arqueológica, incorporando os questionamentos da teoria de gênero, pode atuar. Em contextos de arqueologia histórica esse tipo de abordagem pode ser bastante frutífera, pois além do próprio sítio e do objeto arqueológico, há também informações de contexto histórico e social.
No entanto, no caso da arqueologia feita sobre outros povos, filosoficamente e socialmente distintos da nossa sociedade, como o caso da arqueologia dita “pré-histórica” brasileira, os conceitos de construção da pessoa e por consequência do gênero são muito diferentes do nosso, para isso é muito importante se fundamentar em exemplos etnográficos. O antropólogo Pierre Clastres relacionou a identidade feminina à coleta de frutos e o cesto com objeto emblemático, e a caça à identidade masculina, associada ao arco na sociedade Guayaki no Paraguai. Esse mesmo autor cita dois exemplos de homens que pararam de caçar, um aceito pela sociedade ao assumir uma nova identidade carregando seu cesto e outro ridicularizado por não se integrar nem a identidade masculina nem a feminina carregando o arco e o cesto ao mesmo tempo.
O gênero além de ser uma área temática potencial para ser explorada e trazer aprofundamento na pesquisa arqueológica, também tem forte papel político. A discussão da construção de gênero (muito em voga em políticas públicas e demandas sociais nos últimos anos) e de igualdade de direitos (de reconhecimento identitário, acesso a educação, saúde, trabalho, etc.) são pautas atuais. No entanto, todas as arqueologias são construções hipotéticas e teóricas do presente sobre passado. Então, refletir sobre o gênero e sua construção no passado é uma forma não somente de ampliar temáticas em arqueologia, mas também de propor interpretações mais abertas e menos carregadas dos preconceitos ocidentais, como o machismo, a homofobia e a manutenção do patriarcado.
Camila Jácome é historiadora formada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestra em artes visuais e mestra em antropologia com concentração em arqueologia pela UFMG. Possui experiência de pesquisa em análises de artefatos cerâmicos. Atualmente cursa o doutorado em arqueologia na Universidade de São Paulo (USP), é professora na Universidade do Oeste do Pará (UFOPA) e é ativa em movimentos contra o machismo na arqueologia.
Para saber mais a respeito do assunto:
- Zine sobre Machismo e Arqueologia
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Havia igualdade entre os primeiros homens e mulheres, dizem os cientistas
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BAXTER, J.E. The archaeology of childhood – Children, Gender and Material Culture. Oxford: Altamira Press, 2005.
- BERROCAL, M. C. Feminismo, teoría y práctica de una arqueología científica. Trabajos de Prehistoria 66, N.º 2, julio-diciembre 2009, p. 25-43, ISSN: 0082-5638.
- CLASTRES, P. O arco e o cesto. In: CLASTRES, P. A Sociedade contra o Estado – pesquisas de antropologia política, São Paulo, Cosac & Naify, [1978]. 2008.
- CONKEY, W., SPECTOR, J. Archaeology and the Study of Gender. Advances in Archaeological Method and Theory 7:1–32, 1984.
- CONKEY, M. W., GERO, J M. (Eds.) Engendering Archaeology: Women and Prehistory. Cambridge, MA: Basil Blackwell, Inc, pp. 3–30, 1991.
- DIAZ-ANDREU, M. “Género y Arqueología: Una nueva síntesis”. Revista Primera Vista. 13-51. Editorial Universidad de Granada. Granada, 2005a.
- HERNANDO GONZALO, A. Sexo, Género y Poder: breve reflexión sobre algunos conceptos manejados en la Arqueología del Género. Complutum, ISSN 1131-6993, Nº 18, 2007, págs. 167-173.
- SÁNCHEZ-ROMERO, M. Mujeres, Arqueología y Feminismo: aportaciones desde las sociedades argáricas. ArqueoWeb, 15, 2014: 282-290.
- SEIFERT, D. J. (ed.). Historical Archaeology: Special Issue – Gender in Historical Archaeology. Vol. 25(4), 1991.
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SILVA, S.M; CASTRO, V.C; LIMA, D.R. Arqueologias do corpo e da sexualidade: possibilidades de estudos sobre morte e gênero na arqueologia brasileira. Revista Clio, UFPE. Recife, 2011.