Por: Victor Guida
Ao longo de boa parte do litoral brasileiro, é possível que você encontre montes próximos a praias e lagoas que parecem ser feitos de conchas e areia. Alguns são enormes com mais de 40 metros de altura, outros são bem pequenos e não passam de 2 metros. Você já pode ter estado em cima de algum e não ter percebido o que era, ou então já parou observando de longe um desses montes e se perguntou o que era aquilo e como foi parar ali.
Acontece que essas estruturas, chamadas de sambaquis, são construções humanas feitas há tempos por grupos que ocuparam a costa do Brasil. As evidências arqueológicas mais antigas sugerem que grupos, conhecidos como sambaquieiros, teriam começado a erguer esses montes cerca de 8.000 anos atrás. O ápice da construção de sambaquis foi ocorrer somente alguns milênios mais tarde, entre 4.000 e 2.000 anos atrás, período ao qual pertencem a maioria dos sambaquis descobertos. Apesar de estarem presentes há tanto tempo na costa e de se estenderem por grandes regiões, essa prática cultural passou a não ser mais feita por volta de 1.000 anos atrás, e isso foi concomitante ao aparecimento de outros grupos no litoral.
Mas afinal, o que de fato são sambaquis, qual a importância deles para as populações que os construíram e o que se sabe sobre essas populações? A arqueologia e suas áreas afins podem nos ajudar a responder essas questões e a compreender melhor quem eram os sambaquieiros.
Os sambaquis são sítios constituídos basicamente por várias camadas compostas de areia, terra e conchas. A construção era um processo contínuo, sendo que alguns sambaquis ficaram ativos por milhares de anos. Dentro deles são encontrados inúmeros vestígios de atividade humana, incluindo artefatos líticos, ósseos e de conchas, fogueiras, sepultamentos humanos e diversos remanescentes de animais e de plantas. É devido às formas como foram construídos e aos vestígios neles encontrados que os sambaquis são sítios considerados bastante complexos. É também devido a essa riqueza e complexidade que temos informações sobre quem eram os sambaquieiros, como eram suas vidas e costumes.
Para começar, os sambaquieiros eram grupos caçadores-coletores que viviam em um determinado local pela maior parte de suas vidas. Possuíam grande intimidade com o ambiente marinho, o que é demonstrado pela localização dos sítios (próximos ao mar, lagoas e mangues), pelas atividades que realizavam, como canoagem e remo, e pela sua fonte principal de alimentação, os peixes. Inclusive, pesquisas apontam que sambaquieiros provavelmente possuíam diversas técnicas de pesca que incluíam o uso de rede, anzóis, armadilhas e espinhéis. Mas não só de peixes viviam os sambaquieiros. Também se alimentavam de moluscos, aves, mamíferos terrestres e aquáticos, e de vegetais (há até evidências de cultivo de alguns vegetais!!). Como podemos ver, a alimentação dos sambaquieiros era bem variada.
Os sambaquieiros tinham uma produção bem variada de artefatos que atendiam a diversos propósitos e eram fundamentais para suas atividades de subsistência, ritos e costumes. Conchas e ossos de pequenos animais eram modificados para criação de instrumentos de pesca (ex.: anzóis), de caça (ex.: pontas ósseas) e acessórios (ex.: colares). Diferentes tipos de rocha eram utilizados na confecção de ferramentas de pedra polida, como machados, moedores e almofarizes; e de pedra lascada, como pontas de flecha e raspadores. Alguns grupos sambaquieiros também produziam esculturas líticas com formatos de animais, chamadas de zoólitos, que, apesar de pouco se saber sobre elas, demonstram sobretudo uma grande intimidade desses grupos com o ambiente marinho.
Um dos aspectos fundamentais e mais marcantes dos grupos sambaquieiros é a importância dos rituais funerários. A própria construção dos sambaquis estaria centrada neles. Era comum a ocorrência de sepultamentos com acompanhamentos funerários, os quais incluíam animais inteiros e artefatos, como colares de conchas, joias, ferramentas, entre outros. Eram também realizados festins funerários durante o sepultamento e em visitas posteriores aos locais de enterramento, ocasiões em que se comia em grandes quantidades e se fazia oferendas com alguns animais.
Como visto, os sambaquieiros eram grupos socialmente complexos e heterogêneos, com uma cultura material bastante diversa e que tinham os rituais funerários como um dos pontos centrais de suas sociedades e na construção dos sambaquis. Apesar de tanto conhecimento gerado acerca dos sambaquieiros e dos sambaquis ao longo de décadas de pesquisa arqueológica, ainda há muito a se descobrir e conhecer sobre esses grupos que ocuparam parte do nosso litoral tempos atrás.
Para saber mais
ARQUEOLOGIA E PRÉ-HISTÓRIA. Sambaquis (minissérie). 2020. Disponível em: < https://www.youtube.com/playlist?list=PL6VAFuqv8AbkG6DfqJEMbP7YkkIGcAK82>.
BOYADJIAN, C.; EGGERS, S.; REINHARD, K.; SCHEEL-YBERT, R. Dieta no sambaqui Jabuticabeira-II (SC): consumo de plantas revelado por microvestígios provenientes de cálculo dentário. Cadernos do Lepaarq, v.13, n.25, 2016.
GASPAR, M. Sambaqui: arqueologia do litoral brasileiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
GASPAR, M.D.; DEBLASIS, P.; FISH, S.K.; FISH, P.R. Sambaqui (shell mound) societies of coastal Brazil. In: SILVERMAN, H; ISBELL, W.H (Ed.). The handbook of South American archaeology. Nova York: Springer, 2008.
GASPAR, M.D.; KLÖKLER, D.; DEBLASIS, P. Were sambaqui people buried in the trash?: archaeology, physical anthropology, and the evolution of the interpretation of Brazilian shell mounds. In: ROKSANDIC, M; MENDONÇA DE SOUZA, S. (Ed.). The cultural dynamics of shell-matrix sites. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2014.
MENDONÇA DE SOUZA, S. Dentes, ossos e suas formas: lições aprendidas sobre os construtores de sambaquis. Revista Memorare, v.5, n.1, p. 218-247, 2018.
SILVA, L.A.; GASPAR, M.D. Anzóis, redes e pescadores: reflexões sobre a arqueologia da pesca. Revista de Arqueologia, v.32, n.2, p. 04-15, 2019. WAGNER, G.P.; SILVA, L.A., HILBERT, L.M. O Sambaqui do Recreio: geoarqueologia, ictioarqueologia e etnoarqueologia. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi: Ciências Humanas, v.15, n.2, e20190084, 2020.
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Amigos parabéns pela publicação, gostaria apenas de pedir para mudar a autoria da foto do sambaqui Garopaba do sul, a foto colorida aérea, esta é de minha autoria em 2010. Alexandro Demathé. Já solicitei ao jornal que mude tambem. Agradeço.
Olá, Alexandro. Agradecemos pelo elogio. E já alteramos a autoria, como pedido