Um relato informal (e pessoal) sobre o 9º Congresso “Hombre Temprano en America” e o simpósio sobre dados inéditos e preliminares

Por JuCa

Eu não costumo escrever textos de carater mais pessoal aqui no site, mas achei que esse valia a pena publicar. Afinal, penso que muita gente se interessa sobre os bastidores de eventos de arqueologia e o que de importante aconteceu pra quem não esteve lá.

Durante a última semana de Novembro de 2018 ocorreu o 9º Congresso “El Hombre Temprano en America” (em português: O homem antigo na América), na cidade de Necochea, Argentina. Neste mesmo evento eu coordenei junto com a arqueóloga Letícia Correa (doutoranda pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP) o simpósio intitulado “Novos dados sul-americanos de múltiplas linhas de evidência e suas contribuições à ocupação inicial do continente“.

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O congresso reuniu mais de 150 pesquisadores de todo o continente, mais alguns pesquisadores europeus que realizam suas pesquisas aqui na América. Um fato curioso  é que apenas um pesquisador dos Estados Unidos esteve no evento, o Dr. Tom Dillehay, para apresentar sua pesquisa realizada no famoso sítio Monte Verde, no Chile. Foi minha primeira vez neste evento, então não sei se a ausência de pesquisadores estadunidenses é algo comum no evento mais importante que existe sobre esse tema. Provavelmente essa ausência de pesquisadores estadunidenses foi o que levou o congresso a adotar o espanhol como idioma oficial (ainda que alguns poucos brasileiros tenham apresentado em português mesmo).

Outro fator curioso e que o congresso teve diversas ausências de pesquisadores que haviam confirmado presença. Alguns destes casos foram devido à verba de apoio para viagens em congressos que não vieram ou vieram muito atrasadas (o segundo caso aconteceu comigo, mas consegui contornar o problema), além de problemas  puramente burocráticos na própria Argentina que dificultaram (e impossibilitaram em alguns casos) a chegada de pesquisadores no Aeroporto Internacional de Ezeiza, em Buenos Aires. Acontece que durante a mesma semana estava ocorrendo o encontro do G20 – o encontro dos líderes políticos dos 20 países mais poderosos do mundo (em termos econômicos). Mas isso na impossibilitou que todos os simpósios ocorressem do mesmo jeito.

O congresso contou com 8 outros simpósios, dos quais os meus favoritos foram o simpósio sobre o povoamento do Noroeste da América do Sul, que focou basicamente em sítios paleoíndios da Colômbia (minha terrinha natal), e o simpósio sobre tecnologia lítica. O nosso simpósio sobre “novos dados” ocorreu logo no primeiro dia de evento. E como não havia nenhum outro simpósio ocorrendo simultaneamente, o congresso em peso estava presente.

Nosso simpósio se iniciou com a apresentação de Tom Dillehay (Vanderbilt University), que tratou de um tema de extrema importância para o contexto paleoíndio, mas que pouco se discute: os vestígios perecíveis. Dillehay falou sobre a importância de considerar estes materiais quando tratamos do contexto paleoíndio, mostrando alguns exemplos de fragmentos de cestarias ainda preservadas encontradas no sítio Monte Verde e outro sítios da região. Veja abaixo as fotos do nosso simpósio.

Ainda contamos com duas apresentações sobre zooarqueologia, sendo uma pesquisa realizada nos pampas da Argentina, oferecida por Catalina Valiza Davis & R. Paunero Universidad de La Plata), comparando a fauna de dois sítios; e outra sobre Lagoa Santa, oferecida pela Gabriela Mingatos (Museu Nacional, UFRJ), que mostrou que os grupos paleoíndios da região não selecionavam os animais com base em retorno calórico. A Letícia Correa, além de coordenar o simpósio, também apresentou, junto com Astolfo Araujo (MAE-USP), uma revisão sobre as pesquisas mais recentes na temática paleoíndia realizadas no estado de São Paulo. Também tivemos uma apresentação da Camila Arenas Saavedra (Universidad de Chile) sobre a função de abrigos rochosos da região de Taltal, no Chile. Tivemos G. F. Bonnat (Universidad Nacional Mar del Plata) apresentando aspectos tecnológicos da indústria de um sítio dos pampas. Francisco Catalano apresentou sua pesquisa sobre SIG e uso do espaço pelos grupos paleoíndios de Serranópolis (Goiás). E eu também apresentei pela primeira vez os resultados principais da minha tese de doutorado, na qual eu comprovei que as indústrias líticas anteriormente associadas à Tradição Umbu (pela simples presença de pontas pedunculadas) são bastante diferentes umas das outras, uma vez que sua tecnologia é diferente (e muito) de região para região. Ainda teríamos uma apresentação sobre sítios paleoíndios da Amazônia, mas os pesquisadores não compareceram ao evento. Também tivemos a apresentação de 3 pôsteres, sendo um sobre marcas de corte em ossos de Megafauna em sítios mais antigos de 13 mil anos, um sobre tecnologia lítica dos pampas, e outro sobre zooarqueologia de camelídeos. O simpósio terminou com uma discussão de Astolfo Araujo sobre a importância da interdisciplinaridade e da maior comunicação entre diferentes especialistas, principalmente com relação aos geneticistas, uma vez que esta linha de pesquisa está se tornando mais comum.

No mesmo dia ainda iniciamos as atividades de lascamento e assistimos a um documentários sobre as pesquisas paleoíndias daquela região dos pampas. Eu, sendo um grande entusiasta dos líticos, acabei aproveitando a oficina lítica ao longo do evento, já que ela estava aberta durante todo o congresso. Inclusive, durante o segundo dia, aproveitei as matérias primas  disponíveis para produzir réplicas didáticas de peças típicas da região: as famosas pontas Fell  (mais conhecidas como pontas rabo-de-peixe). O congresso disponibilizou blocos de ortoquartzito altamente vitrificado local e basalto Antofagasta, da região Noroeste da Argentina – o basalto com a melhor qualidade para lascamento que eu já vi (e eu duvido que exista melhor).

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Ponta Fell que eu repliquei usando o basalto Antofagasta.

Ainda no segundo dia houve uma entrevista com Tom Dillehay e Gustavo Politis acerca de suas carreiras e aquilo que eles consideravam de extrema importância para discussão sobre o tema paleoíndio. Politis fez questão de enfatizar a importância de uma maior discussão entre paleogeneticistas e arqueólogos, uma vez que nos últimos anos a genética tem contribuído bastante com dados importantes. Politis destacou que uma maior discussão é importante entre geneticistas e arqueólogos, uma vez que as interpretações e discussões realizadas nos artigos mais recentes sobre genética paleoíndia estão bastante ultrapassadas. Ele ainda relatou que ele foi coautor de um destes estudos apenas pelo fato de ter fornecido amostras para a análise genética, mas não teve a menor participação da discussão que os autores principais (os geneticistas) realizaram. Dillehay concordou com Politis, mas durante a entrevistas enfatizou mais sobre os problemas que ele enfrentou algumas décadas atrás ao realizar escavações na América do Sul durante regimes de ditadura. Dillehay relatou que havia sempre uma desconfiança sobre o que ele realmente fazia em campo, abrindo trincheiras, e sobre o boatos absurdos de arqueólogos estadunidenses serem agentes secretos da CIA… O segundo dia terminou com um maravilhoso banquete de salames e queijos, que eram fatiados usando artefatos líticos. Minha ponta fell de basalto cortou muito queijo naquela noite! E ainda tinha uma exposição de artefatos que comparava os achados da Patagônia com os dos Pampas.

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Exposição arqueológica no Museu de Ciências Naturais de Necochea.
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Caminhando por entre os leões marinhos.
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Solari, Mingatos, Moreno de Sousa & Dillehay – e o cachorro que batizei de Necochico

O terceiro dia foi o menos interessante para mim. E como eu estava mal da gripe, acabei não comparecendo na parte da manhã. Assistí um pouco das palestras da tarde, mas depois boa parte dos brasileiros resolveram ir conhecer os leões marinhos que descansam perto do porto de Necochea. Que bichos maravilhosos!

Na mesma noite teve a festa oficial do evento, com muito vinho, queijo e um cachorro de rua que a Ana Solari (UFPE), eu e o T. Dillehay ficávamos alimentando com base no tráfico de salame que a gente colocava escondido no bolso (já que o pessoal do buffet não queria deixar a gente dar comida pro cachorro).

O último dia foi praticamente todo voltado para a tecnologia lítica na América do Sul. Mas ainda contou com uma mesa sobre arqueologia de gênero, que discutiu a presença de mulheres na pesquisa paleoíndias e sobre as mulheres na pré-história.

O evento foi encerrado com a assembleia geral do evento onde foram votados o local do próximo evento (possivelmente Goiânia, mas ainda é incerto) e a alteração no nome do próprio evento, que deixaria de ter o termo “homem” para adicionar “povoamento”, sendo assim o Congresso “Povoamento Inicial na América”. Mais é possível que o nome atual ainda se mantenha até a próxima edição, devido à burocracia de se alterar o nome de um pedido de financiamento para ele que já está em andamento. Ainda houve uma rifa de três datações C14 para os participantes, sendo uma para profissionais e duas para estudantes. E adivinha só quem ganhou a primeira datação? EU!!!!!!! hahahahaha. Gostaria muito de agradecer ao LEMA (Laboratório Nacional de Espectometria de Masas con Aceleradores), da Universidad Nacional Autonoma de México, por esse maravilhoso presente. Logo logo estarei enviando uma amostra para datação de um sítio paleoíndio.

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Final do evento, muita gente já tinha ido embora, mas eu fiquei pra ganhar essa rifa.

Em geral, o congresso foi um dos melhores que eu já participei, e obviamente um dos meus favoritos, já que é apenas sobre o tema das minhas pesquisas no Brasil. Além de muitos alfajores, vinhos, livros que comprei/ganhei e leões marinhos que eu pude desfrutar, o enriquecimento acadêmico foi o maior que eu tive em relação a outros congressos. Aguardo ansiosamente pela próxima edição, que eu espero mesmo que ocorra em Goiânia, e que Letícia Correa e eu possamos organizar a segunda edição do nosso simpósio nele. E recomendo que todos que trabalhem com essa temática priorizem este congresso a outros (se tiverem que escolher entre outros).

PS: No final do evento a Gabriela Mingatos e eu, como representantes do Museu Nacional (UFRJ), agradecemos pessoalmente à organização do evento pela maravilhosa iniciativa de coletar uma caixa enorme de livros que será encaminhada como doação ao Museu Nacional. Deixo aqui novamente nossos agradecimentos.

Sobre o autor:

João Carlos Moreno de Sousa é arqueólogo. Bacharel em Arqueologia pelo Instituto Goiano de Pre-História e Antropologia da PUC GO, Mestre em arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, Atualmente está concluindo o seu doutorado em arqueologia pelo Museu Nacional-UFRJ com PDSE concluído pela University of Exeter (Reino Unido). Sua área de especialidade é a análise de indústrias líticas e o período paleoíndio brasileiro, com artigos científicos publicado sobre assunto. Também possui experiência em arqueologia experimental, arqueologia cognitiva e divulgação científica da arqueologia e colabora com as pesquisas do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da USP

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